segunda-feira, 31 de março de 2008

...alquimia...





O Alquimista é um poeta-químico.

Não é do tudo o mais fazer ouro o que lhe interessa, mas sim em cada ínfima parte do todo descobrir a luz inteira.

Para uns será um louco, para outros um sábio.

Para mim é um “gostaria de ter sido”.


(ilustração 1: fresco do século XIV sobre alquimia, tela de Bega -.séc XVII - e tela de Breughel – séc XVI)
(ilustração 2: livros de alquimia)

sábado, 29 de março de 2008

...desastre da ponte das barcas...

























Em 29 de Março de 1809 morreram cerca de 4000 portuenses no desastre da Ponte das Barcas – estrutura que ligava Porto a Gaia –, quando a dita cedeu sob o peso de tanta gente que fugia de Nicolas Jean de Dieu Soult e das suas tropas (n 29.03.1769, f 26.11.1851), general às ordens de Napoleão de Bonaporte. Precisamente no dia de aniversário de Soult.

...

...são domingos..





O Alentejo está a renascer. Água, campos cultivados, património valorizado e gente. Gente nova.
Nesse Alentejo que renasce há uma espécie de paradoxo que merece ser visitado. Um recanto. Um recanto que é mais um complexo. O antigo complexo mineiro de São Domingos, entre Serpa e Mértola.
Ruínas de um passado cheio de vida a fazer a vida nas entranhas da terra. Ruínas de ferro feito ferrugem, de águas contaminadas por químicos fruta-cores. Casas, armazéns e fábricas invadidas por heras e árvores. Um silêncio profundo em que nem os fantasmas se escutam. E há fantasmas. Muitos, Fantasmas de mineiros, de capatazes e directores. Suores misturados num rio-sonho que secou. De São Domingos ao Pomarão - onde há mais de cem anos mais de quinhentos barcos por ano se engravidavam de minério para irem parir a Inglaterra, sulcando o Guadiana e navegando o Atlântico – um passado feito de muita gente se esvai na poeira cor de cobre.
Ao ver-se sente-se uma ponte entre a tristeza e a melancolia. Um fim ditado por uma parte da natureza que se esgotou. E esgotando-se, os homens partiram e só restam nas fotografias amareladas pelo tempo. Testemunhos de um anonimato que riu, chorou, suou e amou antanho.
Vale a pena ir a São Domingos – a estalagem é excelente – e andar meio perdido nas picadas e perceber como tudo é um ápice. Neste caso, um ápice que se revela de forma oxidada, como se naquela ferrugem que consome o ferro se pudesse ler, com todas as letras, que o tempo é uma esponja.


Vale a pena ir a São Domingos...

sexta-feira, 28 de março de 2008

domingo, 23 de março de 2008

...da nossas estranhas entranhas e respectiva natureza...

Assim somos feitos

De correrias à moirama
De joelhos feridos na areia da praça
De lambidelas no braço salpicado de mar seco
De desacatos na esquina escura

De ofensas agora intoleráveis e logo relevadas
De amores mil e esquecidos
De navegares ao acaso e à procura da sorte do encontrar
De sonhos construídos numa vida inteira, tornados meras quimeras no funeral
De riso que intercala com a dor fado
De paz que preguiçosamente faz a guerra
De amor imenso aos filhos nossos, dos outros e de todos
De sina manhosa de porteiro de prédio na cidade grande e estrangeira
De poesia amarrada em corpo de guarda-livros
De sangue anarca que deixa a meio as revoluções
Do rubro dos cravos em vaso impossível de metralhadora
De comprometimentos tão fortes e fingidos com as vacas de leite feito subsídio
De certezas que tudo o mais passa e aquilo de que somos feitos para sempre fica


post scriptum: podia ser muito pior.

...do meu baú..


...olimpicamente hipócritas...




Ontem o presidente do Parlamento Europeu Hans Gert Pöttering, defendeu "medidas de boicote" aos Jogos Olímpicos de Pequim caso a China continue a recusar dialogar com o líder espiritual tibetano.
À volta dos Jogos Olímpicos, ciclicamente, emergem todas as hipocrisias, a começar pela própria noção do ideal olímpico de Coubertin e a realidade contemporânea dos ditos jogos que não passam de uma competição feroz e uma feira de vaidades nacionais.
À luz do “ideal olímpico” a maior parte dos países que organizaram os “Jogos Olímpicos da Era Moderna” não o poderiam ter feito, desde a Alemanha de 1936 à ex-União Soviética.
Ameaçar hoje a China de boicote por causa dos tibetanos é ridículo e não passa de um aligeirar mediático da má consciência generalizada. Como se a China candidata à organização do ditos Jogos já não encerrasse em si mesmo, entre muitos outros problemas, o problema do Tibete. Não há diferença nenhuma entre a China-candidata e a China-organizadora, a não ser uma inteligente agitação estratégica dos independentistas tibetanos que sabem muito bem como funciona a “conscienciazinha cívica ocidental”, a mesma que policia o mundo e peja de mortos em nome da dita e sacrossanta “Democracia”, a mesma que o peja de esfomeados e revoltados em nome do santíssimo capitalismo e neo-liberalismo.

sábado, 22 de março de 2008

...do meu "cristianismo"...


O “Cristianismo” pode ser abordado sob várias perspectivas, sendo que a mais comum é a religiosa, já que a figura de Cristo – Deus feito Homem – é a matriz do Catolicismo e das outras variantes do cristianismo religioso.
Eu prefiro a perspectiva filosófica e cultural, que apesar de enquadrada pela perspectiva religiosa, a transcende e é para mim muito mais interessante.
Apesar de me sentir “arreligioso”, sou filosófica e culturalmente cristão. Sou cristão nos valores e princípios em que acredito e sou cristão nos meus hábitos, mesmo nos mais insignificantes.
Esse “Cristianismo” de solidariedade, de tolerância, de amor, do conhecimento do outro e das coisas, de valorização do trabalho e do espírito em detrimento da riqueza, do ócio e da matéria, tem um valor intrínseco que o eleva para além do dogmatismo da fé, para o plano da sabedoria em relação à própria vida.
Esse auto-reconhecimento do meu próprio “Cristianismo”, que não é acompanhado pela abençoada “fé” religiosa, é algo que me dá prazer. Prazer sobretudo pelo sentimento de pertença. Pertença a uma comunidade humana que comunga uma matriz e, mesmo que disso não tenha consciência, um modo de vida.
A única dúvida que tenho, e que nem sequer considero muito importante, é se a noção que possuo do “Bem” e do “Mal” me advêm desse meu “Cristianismo” ou se foram essas noções que a ele me levaram.
O que sei é que no “Sermão da Montanha”, lido à luz dos nossos tempos, cabe tudo desde a Declaração dos Direitos Humanos ao “Direito à Indignação”.

...ervilhas, cerejas e framboesas..."estudo" de Leonardo de Vinci...


sexta-feira, 21 de março de 2008

...de facto e factualmente sobre o facto...

É quase um paradoxo que numa era de todos os escrutínios os “factos” estejam tanto em perigo. Os factos? Sim, os factos, aquelas “coisas” que são.
É verdade que desde que o Homem é Homem o facto sempre foi objecto de muitas distorções, no mínimo tantas quase as perspectivas sobre o dito, mas o Povo de antanho habituou-se a que, mais dia menos dia, o facto perspectivado e destorcido se revelasse em si mesmo. A verdade, nesse antigamente que já lá vai, era “como o azeite”, vinha sempre “ao de cima”.
Hoje já não é sim. Muito dificilmente um facto, um facto em si mesmo, na sua pureza intrínseca, neste agora em que vivemos se pode revelar e ser partilhado enquanto tal.
Essa sanha contra o facto é de tal maneira grave que até tem efeitos retroactivos, ou seja, mesmo os factos passados e arrumados são constantemente adulterados ao sabor das conveniências prosaicas ou sob efeitos da Santa Ignorância.
Como convém andar “à moda” não é por mero acaso nem por razões de poupança que hoje nas redacções dos “órgãos” de comunicação social só quase se vêem estagiários e raramente jornalistas. O problema, ou o testemunho da dita moda, é que esses estagiários não ficam dentro das redacções nem acompanham jornalistas…o problema é que vão sozinhos e sem rede ao encontro dos factos.
E os factos “lixam-se".

...21 de março...

…vinte e um de março, início da primavera, quando o mundo se escancara e renova e as ninfas e os faunos, que quase ninguém vê e menos ainda acreditam, se misturam uns nos outros em tropelia de cascos e suspiros, numa dança alucinante que do caos faz o sentido claro, preciso e necessário porque do mesmo depende o continuar, para além dos credos e das religiões, da fé dos homens e dos enganos, para além da fome e da saciedade, da riqueza e da pobreza, para além dos tempos que correm, dos modos em que se faz e das circunstâncias em que se sobrevive…
Não perceberam? Então façam um favor ao desencanto e leiam outra vez.

...


quinta-feira, 20 de março de 2008

quarta-feira, 19 de março de 2008

...deambulações...






















Fui comer fois-gras e beber bordeaux. Fui deambular por uma das minhas cidades preferidas em que me sinto sempre em casa. A minha bússola fez-me falta. Um frio de rachar. Quando hoje, ao fim do dia, parti disse-lhe au revoir. E assim será.

domingo, 16 de março de 2008

...conta-me como foi...

Conta-me como foi” é uma série transmitida pela RTP1, segundo um formato que creio ser espanhol, e que relata a vida de uma família da dita “baixa classe média” nos fins dos anos sessenta, num Portugal pré-Abril, em plena “Primavera Marcelista”.
Esta série está, na minha opinião, muitíssimo bem realizada e excelentemente interpretada pelos actores de várias idades.
Retrata um modo, um tempo e umas circunstâncias que eu ainda vivi na primeira infância – quando se deu o 25 de Abril tinha nove anos -, altura em que se fixam para sempre em nós sons, cheiros e imagens.
Tenho tido o grande prazer de assistir à maior parte dos episódios na companhia da minha filha (17 anos) que gosta, também, muito da dita série, e que tem permitido, com a cumplicidade da mãe, conversas muito interessantes sobre política, filosofia, sociedade, publicidade e muitos outros aspectos, nomeadamente o grande contraste entre um tempo, que apesar de tudo, foi meu e o tempo que é dela.
No episódio de hoje, um dos assuntos abordados foi a chegada do Homem à Lua que, curiosamente, é a primeira transmissão televisiva de que me recordo. Lembro-me perfeitamente de estar a assistir a isso, dos “xxxxxxisssssss” da imagem e do som que perturbavam a nitidez da dita, do velho televisor Grundig, da sala daquela minha antiga casa e dos respectivos sofás, forrados a tecido alinhavado verde muito escuro.
Tempos, em que no meio de tanta coisa má, também havia muitas coisas boas.

quinta-feira, 13 de março de 2008

...sobre o acordo orto-horrográfico...

Se considero que os brasileiros têm todo o direito de escreverem português conforme o entenderem, também acho que os portugueses possuem rigorosamente o mesmo direito.
Para mim um esse “facto” nunca será um “fato”.
Este dito acordo não passa de uma cedência ao poderoso mercado editorial brasileiro e nada abona em favor dos brasileiros. Eu sempre li Jorge Amado e Ubaldo Ribeiro em português escrito “in brasilian way” e percebi “tudinho”. Não tenho culpa de, alegadamente, os brasileiros não conseguirem ler Camões ou Pessoa em “Português de Lei”.
Portugal, pátria do Português, não pode nem deve impedir que outros países de expressão portuguesa adoptem as normas gráficas que entenderem, mas tem especiais responsabilidades em relação a manter a matriz linguística, e essa matriz, para o bem e para o mal, é aquela que por cá se fala e escreve. Isso não impede que a própria língua matriz evolua. Claro que evolui, longe vão os tempos da pharmácia, mas essa evolução é isso mesmo…uma evolução. Não é o resultado de decisões unilaterais de uns pseudo-entendidos. Ph_d_m-se!

quarta-feira, 12 de março de 2008

... ASAE actua no Vaticano….

“homilias mais curtas, genuflexão diante das espécies eucarísticas consagradas, favorecendo a adoração de joelhos e receber a comunhão na boca e não nas mãos.”(novas regras para o culto Católico Apostólico Romano).

segunda-feira, 10 de março de 2008

...a educação e a república de pacotilha...


Vivemos hoje em dia momentos muito conturbados caracterizados por uma crise económica e financeira grave, pelo desemprego crescente, pela contestação social permanente - envolvendo vários e distintos sectores da população - pelo aumento da criminalidade violenta, especialmente nas áreas urbanas, e pelo descrédito perigoso da maioria das pessoas em relação quer aos órgãos de soberania quer em relação às principais instituições do Estado.
Este cenário encerra em si mesmo todos os elementos necessários ao proliferar da demagogia e à tentação de aventuras políticas anti-democráticas, que ainda não são concretas porque o facto de estarmos inseridos na União Europeia inibe ou, pelo menos, atenua.
Mas essa inibição ou atenuar de efeitos não vai durar sempre nem anula a patologia de que o País enferma.
Tenho para mim que a razão principal para esta situação assenta, não só mas sobretudo, no sistema de Educação.
Este sistema de Educação, sucessivamente reformado, reciclado e remendado, tem não só produzido ignorantes e incompetentes mas – muito mais grave – maus cidadãos. Cidadãos que são maus porque não sabem quais são os mais elementares direitos e deveres inerentes à própria cidadania.
Este sistema de Educação tem-se preocupado quase exclusivamente pelo “sucesso” – e neste sucesso entenda-se redução das taxas de reprovação e de abandono escolar – e muito pouco com a real aquisição de conhecimentos e menos ainda com a formação integral.
Um sistema assim, preocupado com o sucesso, quase instintivamente baixa a sua própria fasquia de forma a conseguir passar o maior número possível de alunos e a mantê-los no universo escolar até ao fim do ciclo de ensino obrigatório, como se isso fosse o mais importante, e não é a não ser para a estatística.
Um sistema assim produz em série maus professores, maus médicos, maus juristas, etc. e muito especialmente – como já referi – maus cidadãos, num ciclo vicioso terrível.
Quando os País é composto por uma grande maioria de maus cidadãos, mesmo que também na sua maioria boas pessoas, as instituições – que são mais importantes que as pessoas mas que são por elas compostas – são fracas e socialmente inúteis.
Um país alicerçado em instituições fracas e socialmente inúteis não passa de uma república de pacotilha onde o pior é sempre possível.
Quando o pior é sempre possível, facilmente se atinge o patamar da insustentabilidade e o da irracionalidade colectiva.
A insustentabilidade acontece quando as reformas já não são possíveis porque não são politicamente assumidas e levadas até ao fim e a irracionalidade verifica-se quando as pessoas já não acreditam em nada e em ninguém, recusando e contestando tudo de forma liminar e entrando numa espiral incontrolável de contestação quase anárquica e fértil para o florescer de toda a espécie de totalitarismos.
A reforma total do sistema de Educação é assim imprescindível e os seus efeitos vão demorar muito tempo a serem assimilados pela sociedade.
Portugal precisa de uma Escola Responsável – desde o jardim de infância à universidade. Uma Escola Responsável é um espaço de Liberdade, e como não há liberdade sem responsabilidade, todos os membros da comunidade escolar – professores, alunos e pais - têm que ser responsáveis e responsabilizados.
Essa responsabilidade e responsabilização implica – para todos – avaliação rigorosa, disciplina e meios efectivos de controlo e de sanção.
Só assim a Escola poderá cumprir a sua missão: Formar.
Os professores – elementos essenciais ao bom funcionamento do sistema – devem ser avaliados objectivamente e dispensados se não forem bons. Os alunos devem ser examinados com rigor, reprovados se não souberem o suficiente para passar e expulsos se não cumprirem as regras. Os pais devem ser obrigados a participar activamente na formação dos seus filhos – dentro e fora da Escola – e se não o fizerem adequadamente devem enfrentar a Justiça e a comunidade em que estão inseridos deve estar preparada para, em situações graves, substituírem os próprios Pais que se revelem incapazes de exercer esse papel.
O sistema de Educação – do jardim de infância à entrada para a universidade – deverá ser caracterizado por um corpo curricular e programático único, sem distinções – com algumas disciplinas de opção diferentes, a partir de um grau mais avançado de escolaridade, mas que não substituam as nucleares.
O português, a matemática, a história, a filosofia, a física, a química, as TIC e as artes ensinados devem ser iguais para todos, independentemente de se tratar de um aluno que posteriormente seguirá direito, medicina, engenharia, etc. ou vias profissionalizantes.
As Escolas Responsáveis são aquelas que são geridas por objectivos e o Decisor máximo não deve ser parte da coisa gerida – ou seja não pode ser um professor. Isso não significa um governo ditatorial da Escola, bem pelo contrário, já que a mesma deverá ter órgãos que funcionem, tais como as Assembleias de Escola e os Conselhos Pedagógicos, que deverão definir e ditar as directivas ao Decisor máximo.
Esse Decisor Máximo deverá ser nomeado por concurso nacional, mediante um perfil e habilitações académicas e profissionais claramente definidas na Lei e o seu mandato deverá estar temporalmente balizado.
Muito mais há para dizer, nomeadamente ao papel dos Sindicatos que são cada vez mais caixas de ressonância partidárias e fontes de problemas e manipulações e nunca de soluções.

domingo, 9 de março de 2008

..já li o Lavagante..

Já o li. Vale a pena.

...a marcha - fdp de País -....

Ontem, na dita “marcha dos professores”, vi o pior que há no País: o sindicalismo estúpido -eternamente problema e nunca solução -, uma classe desprestigiada e estupidificada que nem sequer consegue ler uma lei, um decreto-lei ou um regulamento até ao fim – dá muito trabalho e as letras são muito pequeninas -, completamente assustada pela mudança, habituada que está a uma inércia apodrecida que só a tem prejudicado – pelo menos aos melhores da mesma -, marchando com a prole como se de romaria ou pic-nic se tratasse, uma comunicação social ignorante, enlouquecida pela fome do espectáculo sangue – o cadáver ansiado é o da Ministra -, incapaz do esforço de explicar e de informar, um Primeiro Ministro ausente, a assobiar para o lado, sem a coragem necessária para dar a cara e assumir, ao lado da dita Ministra, a sua exclusiva responsabilidade.
Deviam ser todos encarcerados por crime de lesa-democracia.

sábado, 8 de março de 2008

...Lavagante, encontro desabitado...


Nascido a 02 de Outubro de 1925 e falecido em Lisboa a 26 de Outubro de 1998, José Cardoso Pires é um dos maiores vultos da literatura portuguesa do século XX, e um dos meus autores preferidos. Tenho o prazer de conhecer toda a sua obra que considero obrigatória para todos os cultores da boa leitura.
Este “Lavagante, encontro desabitado” é uma obra póstuma que em boa hora as “Edições Nelson de Matos” resolveram "dar ao prelo". Ainda não li, mas vai ser já de seguida e como se trata de José Cardoso Pires recomendo-o, desde já, mesmo assim.

...mulher o projecto gaya...

sexta-feira, 7 de março de 2008

...do meu baú..o Barroco a Utopia do Poder...


Barroco – uma utopia do poder

É sobretudo com o Barroco que a utopia, vinculada ao exercício do poder, surge enquanto uma constante avassaladora e sufocante em muitos aspectos.
Caracterizado pela quase sistemática teatralização de todas as facetas da actividade humana, quer ao nível dos comportamentos – individuais e colectivos – quer ao nível dos processos produtivos, fez com que a cenografia, a exímia arte de criar espaços bem definidos – quanto aos limites e aos objectivos -, mas absolutamente ilusórios quanto à sua verdadeira natureza, invadisse quase todos os domínios das realizações humanas.
A ideologia que emerge e será preponderante neste período, é sem dúvida o Absolutismo, que na sua essência mais não é que um modelo utópico, equacionando um exercício discricionário do poder, através de um mandato incontestável e inquestionável, por delegação divina. Não interessará muito aqui abordar as variadas tipologias de fundamentação – e muitas foram as adoptadas, umas mais de natureza contratual, outras menos de natureza contratual -, mas sim chamar a atenção para alguns aspectos reveladores da omnipresença utópica nesta reformulada concepção do poder.
Luís XIV
[1] é um dos principais encenadores e intérpretes – ou actores -, se não o principal, da utopia absolutista[2].
Uma das facetas pouco exploradas da acção desse rei francês, é a abordagem da luta verdadeiramente titânica que ele travou com uma cidade: Paris
[3].
Quando um homem tenta vencer uma cidade, prossegue uma louca quimera. Sentindo-se ameaçado pela alma rebelde parisiense, e querendo, ao mesmo tempo, reunir à sua volta, para melhor os controlar, todos os Grandes de França, decidiu erigir um palácio-complexo, uma verdadeira urbe para a sua Corte, afastando-se assim da Cidade Luz, ocultando-se numa penumbra propícia à mitificação.
“O Palácio atraía as novas avenidas da cidade, assim como o próprio governante reunia o poder político que outrora estivera disperso entre a multidão de famílias feudais e corporações municipais. Todas as principais avenidas, conduziam ao Palácio”
[4].
Versalhes, constituído pelo Palácio e por uma enorme área envolvente, dotado de uma planta subjugada a um poderosíssimo vértice polarizador, com imensas semelhanças com a germânica Karlsruhe, é um modelo urbano simultaneamente fractal e unitário, onde cada um dos elementos constitutivos potenciam desenvolvimentos particulares, mas onde jamais a unicidade de todo o complexo – lido na sua globalidade – é posta em causa.
Versalhes é uma verdadeira orgia da perspectiva, onde o ponto de fuga se confunde no horizonte com o céu, e para além dos limites onde alcança a vista do comum mortal, encontra-se, omnipresente, a imagem divina.
Em Versalhes, a sobriedade da linha recta, assume uma força ascendente em que a possibilidade de a contrariar não existe
[5].
“Lei, ordem, uniformidade – tudo isto são, pois, produtos da capital barroca, mas a lei existe para confirmar a situação e assegurar a posição das classes privilegiadas, a ordem é a ordem mecânica, baseada...na sujeição ao Príncipe reinante...O antigo deus da cidade tornava-se agora uma divindade nacional...Aquele deus renovou as demandas originais de tributos e sangue humano. Le Roi Soleil aproximou-se tanto quanto permitia a teologia cristã de ser um verdadeiro Deus-Sol
[6].
O combate de Luís XIV, contra a projecção de Paris, foi inglório. Versalhes, mesmo em vida do soberano, nunca cumpriu o objectivo de anular a capacidade do velho burgo. Pensar que uma “gaiola”, mesmo que dourada, poderia alguma vez derrotar um organismo vivo, com a sua existência e permanência fundadas no próprio fluir dos tempos, dotado de alma e de uma vontade de todos, e ao mesmo tempo de ninguém, não passou de uma mera utopia de curta duração e de nenhuma validade.
A desordem própria das cidades não é nenhum caos gratuito e não se elimina por decreto, o máximo que se lhe pode fazer é balizá-la, criando-lhe condições para o seu próprio progresso, para a optimização da sua eficácia funcional.

[1] Luís XIV (n. 1638, m. 1715, reinou em França de 1643 a 1715): filho de Luís XIII, o Justo, sua mãe, Ana de Áustria, que confiou o governo ao cardeal Mazarino, que o exerceu até à sua morte (1661). A partir de então, o monarca exerceu pessoalmente o poder, convertendo-se no protótipo do monarca absoluto...”,DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO ALFA,, Publicações Alfa, S.A, 1992, p. 703.
[2] “O interesse do Estado deve passar acima de tudo. Quando temos em vista o Estado, trabalhamos para nós. O bem de um faz a glória do outro”., LUÍS XIV, citado por TOUCHARD, Jean, “História das Ideias Políticas”, vol II, Publicações Europa-América, 1991, p. 121.
[3] “Paris...recentemente traída pelo seu rei...em proveito do monstro de Versalhes...”, CHAUNU, Pierre, “A Civilização da Europa Clássica”, vol II, Editorial Estampa, 1993, p. 57.
[4] MUNFORD, Lewis, “A Cidade na História”, Martins Fontes, 1991, p. 421-422.
[5] “Versalhes, ultrapassagem dialéctica e clássica, com o triunfo sem limites da linha recta, a economia de meios e a harmonia matemática das massas...barroco, diga-se pela desmesura...Fuga das linhas rectas até ao infinito.”, CHAUNU, Pierre, “A Civilização da Europa Clássica”, vol II, Editorial Estampa, 1993, p. 57.
[6] MUNFORD, Lewis, “A Cidade na História”, Martins Fontes, 1991, p. 399.

quinta-feira, 6 de março de 2008


...200 anos da chegada da Família Real ao Brasil...



Há duzentos anos desembarcava no Brasil a Família Real Portuguesa, acompanhada de cerca de 15.000 pessoas, numa inteligente manobra político-diplomática que evitou o possível aprisionamento do Príncipe Regente por pelas tropas de Bonaparte e teve como consequência mais ampla a modernização do Brasil e a sua posterior manutenção na esfera da lusofonia.

O livro “Império à deriva”, que já aqui abordei é um excelente documento extremamente factual, escrito por um estrangeiro, o que contribui para uma visão desapaixonada, que relata esse período em que a Soberania de Porugal esteve sediada no Brasil.

quarta-feira, 5 de março de 2008

...sobre as utopias...(do meu baú)...

O uso do termo “utopia” – derivado do grego e que significa à letra “não-lugar”, mas que pode simultaneamente ser entendido no sentido de eu-topia (“bom-lugar”[1]) – para designar uma cidade perfeita, surgiu com a publicação da obra de Tomás Morus “A Utopia” (1516), que descreve o modo de vida das pessoas, caracteriza instituições político-sociais e idealiza um espaço de vida específico numa ilha imaginária. A “Utopia” de Morus teve um grande impacto no seu tempo e uma influência que perdura até aos nossos dias, de tal forma que o termo “utopia” foi subsequentemente adoptado e adaptado a inúmeros conceitos propostos, definidos e desenvolvidos por muitos formadores sociais e também por inúmeros visionários.
Utopias poderão ser concepções de sociedades ideais, nas quais os problemas de índole social, político e económico, que de uma forma ou de outra, com maior ou menor intensidade, sempre afligiram a humanidade, foram definitivamente erradicados, em que as instituições, nomeadamente o(s) estado(s), encontram na promoção do bem e da felicidade colectiva as suas únicas e exclusivas funções.
A “República” de Platão, escrita século IV aC, é usualmente encarada como a mais antiga e mais vasta obra do género da chamada literatura utópica, embora o bíblico Jardim do Eden possa também ser descrito e entendido como uma utopia.
Como exemplo de outras publicações famosas e socialmente influentes, em que a temática utópica é uma constante, podemos referir “A Cidade do Sol” (Campanela, 1623), “A Nova Atlântida” (Francis Bacon, 1627), “Oceana” (James Hamington, 1656), “Esenhon” (Samuel Butler, 1872), “Looking Backward” (Edward Bellamy, 1888), “News from Nowhere” (1821), “Modern Utopia” (H.G. Wells, 1905), “Walden Two” (1848) do behaviourista Skinner, entre muitas outras e para não referir inúmeros ensaios, contos e mesmo romances deste século.
Durante o século XIX, foram feitas inúmeras e esforçadas tentativas para estabelecer “comunidades utópicas”. A maior parte delas foram fruto do advento do socialismo utópico, tais como as preconizadas pelo Conde de Saint Simon
[2], por Charles Fourrier[3], por Étiénne Cabet – em França -, por Robert Owens[4] – no Reino Unido e EUA – e por Robert Dale Owen (filho do anterior) nos EUA.
Embora diferindo consideravelmente entre eles nas suas visões específicas, estes “pensadores utópicos” acreditaram que sociedades ideais poderiam ser estabelecidas e concretizadas sem grandes dificuldades, criadas a partir de pequenas comunidades constituídas pelos seus seguidores. Saint Simon, aliava a felicidade futura ao crescimento industrial. Fourrier, pelo contrário, advogava pequenas comunidades essencialmente agrícolas, em que as pessoas viveriam em pequenos, mas auto-suficientes, “falanstérios”, livres de constrangimentos próprios e impostos pela “civilização”.
“Colónias” experimentais, baseadas nas teorias destes filósofos, foram ensaiadas na Europa e nos EUA, sendo de salientar as famosas comunidades cooperantes “New Harmony” e “New Lanark”, fundadas por Robert Owen.
A maior parte destas comunidades experimentais não durou muito tempo, com a excepção da “Comunidade de Oneida” – implantada no estado americano de New York – que subsistiu entre 1848 e 1881.
Nos meados do século XIX, os socialistas utópicos foram, paulatinamente, eclipsados por movimentos se não mais militantes pelo menos mais radicais.
Mais recentemente, a literatura tem produzido obras centradas na temática das utopias, cientificamente aplicadas em sociedades extremamente avançadas na perspectiva tecnológica. Curiosamente também surgiu um género literário que podemos classificar de “anti-utópico” de que – por exemplo – Aldous Huxley
[5] (“O Admirável Mundo Novo”), George Orwell[6] (“1984”), Kurt Vonnegut[7] (“Player Piano”) e também Gunther Grass (em determinada medida), são exímios.
A ligação da problemática das “utopias” à problemática artística não é difícil de estabelecer, se entendermos o fenómeno artístico como a incessante busca da expressão do belo
[8] ou como uma tentativa de narração do desespero e angústia da aventura da humanidade ao longo dos séculos, ou então como a expressão plástica do feio, do grotesco, do mau, do mal, do horroroso, do imoral, do amoral e do injusto, efectuado como uma gritante e poderosa reacção de denúncia de um mundo também quase sempre feio, grotesco e pérfido.
Ambas as perspectivas, sintetizadas pelos binómios forma/conteúdo, expressão estética do belo/denúncia permanente de qualquer que seja a escravidão, encerram sempre – mesmo que não ao nível do consciente – uma concepção utópica que se pressente ou então que ardentemente se deseja
[9].
O desejo do belo absoluto, manifestado pela construção e elaboração plástica ou pela vontade da descodificação dos conteúdos, no fundo as raisons de vivre mais plausíveis do artista corajoso, são processos ou atitudes que, inegavelmente, mergulham de forma profunda na “Utopia”.
É evidente que as “utopias” representam uma inquietação individual ou colectiva perante o presente – que segundo Santo Agostinho
[10] (n. 354, m. 430) nem sequer existe – e o devir civilizacional. Representam sempre, também, a expressão mais ou menos explícita de um desajustamento e são, frequentemente, reflexos do medo do entendimento e aceitação não só da própria liberdade como a da heterodoxia do progresso. A busca alucinada da beleza e também da perfeição, pode significar cegueira absoluta ou mais atroz das incapacidades de comunicar.
A paradoxal concretização de um mundo ideal, forjado por uma mente, que até pode ser – quase sempre o é – bem intencionada, mas que é ao mesmo tempo angustiantemente solitária, significaria o atingimento de um universo redutor, imóvel e escravizante.
“Platão, erradamente, tomou os pontos ideias da bússola como destinos reais. Para ele, o bem e o mal eram ideias eternas, imutáveis e separadas: uma vez implantadas, jamais precisam mudar. Por medo de leis, por meio de uma rigorosa censura, através da firme disciplina, por meio de controles totalitários isolados pelo sigilo, propunha ele remover o mal e manter o bem. Pouco compreendeu que os próprios instrumentos que escolhera inverteriam esse processo. O que não compreendeu, mais ainda, foi que embora o bem e o mal sejam pontos fixos da bússola moral, as correntes da própria vida muitas vezes invertem sua polaridade. O mal trará bençãos – como diz Emerson – e o gelo queimará. Um bem procurado de maneira por demais inflexível pode transformar-se num mal granítico, estabelecendo um limite ao desenvolvimento maior; ao passo que o erro e a falsidade, quando reconhecidos e desafiados, podem, nesse próprio acto, proporcionar energia para um movimento à frente.
Como um moldador de botões, Platão procurou fundir a vida num molde preparado: o ouro num, o bronze noutro, o barato chumbo num terceiro. Não tinha em si qualquer coisa do jardineiro ou do biólogo experimental, que selecciona a semente, planta-a no solo correcto, com a devida exposição ao sol; em suma, coopera com a natureza enquanto procura melhorar suas formas selvagens, tendo em vista o consumo humano – não procurando a perfeição num substituto mecânico, arbitrariamente medido e configurado.
Platão subestimava os estímulos e desafios vitais do crescimento: a variedade, a desordem, o conflito, a tensão, a fraqueza e até mesmo o fracasso temporário. Cada uma dessas coisas, quando não se petrifica num padrão fixo pode produzir uma comunidade muito mais desejável do que qualquer forma de conformidade, seja essa conformidade imposta pelos executivos filisteus de um moderno órgão de governo, por uma corporação de negócios ajudada por computadores, ou pelo maior pensador que Atenas ajudara a produzir”
[11].
A “utopia” encarada enquanto projecto ou então enquanto programa que se tenta concretizar, seja na elaboração de um manual filosófico seja no planeamento de uma urbe, em que não só as estruturas físicas são esquematizadas mas também as próprias relações interpessoais e as relações entre as pessoas e a multiplicidade das estruturas, só perdurará na memória do homem, enquanto referência intemporal, se ela própria for portadora das condições que a ponham, de per si, em causa, possibilitando o progresso relacional, social, cultural, espiritual e até mesmo económico, ou seja, a “utopia” só se transcenderá para além de um mero exercício, se encerrar em si mesmo o vírus da sua própria adulteração, se a quimérica passagem da sua potência em acto representar não a quietude programática que a baliza e corporiza, mas sim o desassossego empreendedor e criador, daqueles que tiveram o privilégio, mesmo que num ápice, de a terem sentido.
A “utopia” da absoluta harmonia, que se vislumbra no traçado de uma praça de um arquitecto renascentista, está condenada pelo derradeiro destino funcional do próprio espaço pensado: um pólo gerador de vida de um núcleo urbano, um pólo criador e enquadrador de muitas e multifacetadas vivências.
É impossível desligar a utopia da arte e desligar a arte da cidade. A “utopia” é a alma mater da obra de arte e “a cidade favorece a arte, é a própria arte (Lewis Munford
[12])...A origem do carácter artístico implícito da cidade lembra o carácter artístico da linguagem, indicado por Saussure[13]: a cidade é intrinsecamente artística...Todavia, sempre existe uma cidade ideal dentro ou sob a cidade real, distinta desta como o mundo do pensamento o é dos factos...A ideia da cidade ideal está profundamente arreigada em todos os períodos históricos, sempre inerente ao carácter sacro anexo à instituição e confirmado pela contraposição recorrente entre cidade metafísica ou celeste e cidade terrena ou humana”[14].
A este propósito, Peter Dronke (Universidade de Cambridge), sobre Santo Agostinho e o seu pensamento magistralmente traduzido na incontornável obra para o estudo do pensamento ocidental, “A Cidade de Deus”, afirma: “Também Santo Agostinho... tende a falar de duas cidades, uma abençoada e outra perversa, Jerusalém e Babilónia, que sempre coexistiram na terra e aí estiveram em conflito: num vasto mundo habitado por tantos povos diferentes, com religiões e costumes diversos, infinitamente divididos em sua língua, armas e roupagens, não surgiram no entanto, mais de duas espécies de seres humanos, que nós poderíamos chamar duas cidades...Santo Agostinho tende a apresentar o contraste entre estas cidades em tons absolutos: Dois amores, por conseguinte, deram lugar a duas cidades: o amor de si próprio com desprezo de Deus à cidade terrena; o amor de Deus com desprezo de si próprio à cidade celeste. A primeira cidade busca a glória nos homens; para a segunda Deus como testemunho da consciência é a maior das glórias. Em resumo, uma cidade ufana-se de si própria, a outra de Deus...Nesta não há a sabedoria do homem, mas somente devoção pela qual o verdadeiro Deus é devidamente adorado, aguardando a recompensa não apenas entre a comunidade dos santos mas também entre a dos anjos, para que Deus possa ser todo em tudo.
A cidade terrena, por outro lado, tem conflitos que lhe são intrínsecos: A cidade terrena que não será perpétua, tem aqui o seu bem. Mas com esse bem não pode evitar o sofrimento dos seus namorados, esta cidade é com frequência dividida por discórdias, hostilidades e lutas, em busca de vitórias mortíferas.
A cidade celeste é a glorificação última da Igreja: é a cidade da santa visão de S. João. Homens e anjos viverão nela sem inveja, e nela será alcançada a liberdade perfeita: por conseguinte, o livre-arbítrio dessa cidade será uno de todos e inseparável em cada um, libertado de todo o mal e pleno de todo o bem, deleitando-se inesgotavelmente no júbilo das alegrias eternas, esquecendo a dor”
[15].
As “utopias”, revelam claramente características comuns e antigas. Todas expressam um maravilhoso dinamismo intrínseco no seu formular, traduzida na vontade férrea na provocação de rupturas e um enorme imobilismo no programa expresso, sendo construções rígidas, cristalizadas num tempo e num espaço perfeitamente definido e delimitado.
Não é por acaso que as principais referências utópicas explícitas, com destaque às efectuadas por Morus e por Campanela, ou são ilhas ou cidadelas rodeadas, encerradas, em fortes muralhas, quais casulos estanques.
Sendo sempre as películas em negativo das sociedades que inexoravelmente as determinam, as “utopias” encerram em si mesmo a expressão de valores sonhados como potenciadores de um progresso. Buscam um homem novo que necessita de um espaço novo para viver, com o objectivo de uma realização que não é pessoal mas sim colectiva
[16].
Esse espaço novo, que não pode ser dissociado dos valores e princípios filosóficos que o inspiraram, exprimem soluções de arquitectura espacial e de edificação, que não deixaram de influenciar o desenvolvimento das concepções urbanas.
Com Morus e Campanela podemos retirar, quase por oposição, uma imagem muito nítida de quais foram as expectativas não satisfeitas do Renascimento e também constatar o impacto ao nível das mentalidades quer da Reforma quer da Reforma Católica.
As suas constantes buscas de auxílio numa visão eminentemente clássica do espaço, sobretudo do espaço urbano, em que nem o cardo nem o decumanos estão ausentes, nem faltam a acrópole nem o ágora, onde as concepções construtivas são em grande medida, indubitavelmente, greco-romanas, a começar pela profusão de colunas e a terminar nos próprios materiais de revestimento – os pedagógicos frescos, mosaicos, etc. -, onde as estruturas de utilidade pública como os banhos, termas, a configuração das redes de saneamento e de fornecimento de água, apreendidas directamente de Vitruvius ou indirectamente através dos tratadistas do Renascimento, que mais não fizeram dos que as recuperar – sem verdadeiramente reformular ou inovar as soluções antigas -, são uma forma de reacção feita conflito com a realidade brutal de uma época de perseguições político-religiosas, onde a artilharia e o consequente desenvolvimento da piro-balística, determinaram forçosamente o encontrar de soluções pragmáticas, muito menos idílicas mas muito mais eficazes, que apesar de tudo são incorporadas incoerentemente, atabalhoadamente, no projecto utópico, numa estranha e maravilhosa mistura transportada para o mesmo imaginário.
Assim, o imaginário utópico, para além das roupagens ideológico-filosóficas, traduz um espaço que se transforma num verdadeiro cadinho de referências, muitas vezes antagónicas, tantas vezes inconciliáveis. A sobriedade e a – sob muitos aspectos divinas – universalidades da linha recta e do círculo perfeito, são subjugadas perante a practibilidade das soluções. Não é por acaso que nas obras de Morus e Campanela a questão espacial física – seja ao nível da expressão da planta urbana seja ao nível das manifestações arquitectónicas – nos surge, numa primeira fase, como de importância fundamental, sendo mesmo a problemática de início de cada uma das “utopias” retratadas, e à medida que as duas construções mentais vão evoluindo e a plasmação das questões eminentemente sociais se concretiza, vai-se paulatinamente esbatendo e em muitos aspectos tornando-se moldura inadequada ao próprio fluir das “histórias”.
O espaço urbano utópico – na planta e na arquitectura – é abstractamente simples, depurado quase em absoluto de artificialismos aparentes, caracterizado pelo primado inflexível da recta e das formas rígidas, em que o suficiente é sempre bastante, tal como um regularíssimo e asséptico invólucro de medicamento.
A beleza voluntariamente materializada no espaço utópico, só interessa e surge se for funcionalmente pedagógica – aspecto gritante em Campanela – e paradoxalmente acontece através da sobriedade excessiva e inumana das estruturas e só na medida em que o despojamento poderá ser belo.
No espaço utópico, não verdadeiramente lugar para a possibilidade, mesmo que remota, da criação e da realização individual, tudo é concebido em função do colectivo, do corpo total comunitário, que não admite excrescências ou diversidade porque não vê nela qualquer necessidade, como para o homem é manifestamente desnecessário três pernas ou três braços.
As fontes e os lagos existem não para embelezarem ou enquadrarem, mas simplesmente para saciarem a sede e lavarem os corpos e as coisas. A rua “utópica” não é rasgada para que o indivíduo a percorra, mas para que a comunidade nela flua sem chocar, sem contactar.
Apesar da beleza programática emanente de uma ordem pensada para garantir a igualdade, não é possível escapar ao sentimento de horror perante a perceptível falta de liberdade, perante uma escravidão tornada perpétua, que traduziria para o ser humano a sua concretização, condenado a um mesmo papel, a uma mesma rotina, a uma mesma paisagem pelos séculos fora
[17].
As “utopias”, sobretudo as renascentistas, são na verdade parábolas que pouco evoluíram em termos de conteúdo último das parábolas das Escrituras.
Demasiadamente simplistas, ingénuas muitas vezes, as “utopias” não são na verdade portadoras eficazes das sementes da mudança, são na sua maioria mesclas de sonhos da sua contemporaneidade, basicamente repescados nas reminiscências de um passado mitificado, fruto de processos mentais que fluem a velocidade de caracol e que são ultrapassadas pela própria dinâmica social.
As mais importantes concepções utópicas foram idealizadas em plena época das Descobertas e foram, apesar disso, incapazes de assimilar as verdadeiras riquezas resultantes do extraordinário alargamento dos horizontes, apenas buscando o pitoresco e o exótico, não conseguindo libertar-se da tremenda força e peso de uma herança grega, judaica e cristã, da lógica aristotélica e também de um permanente medo do fogo inquisitorial, real ou reminiscente, que continuou a consumir e a tolher consciências até pelo menos ao dealbar do século XX.
Esse tremendo desaproveitamento do movimento das Descobertas, não aconteceu apenas ao nível das concepções utópicas, reflectindo-se muito mais gravosamente nas universidades, que à velha escolástica fizeram suceder uma “nova” escolástica.

[1] ARGAN, Julio Carlo, FAGIOLO, Maurizio, Guia de História de Arte, IUEE, 1992, p. 157.
[2] Saint-Simon, Conde de, nasceu em 1760 e faleceu em 1825. Tendo participado na guerra da independência americana (1779-1782), aderiu à Revolução Francesa (1789). Foi um dos primeiros teóricos da sociedade industrial. É da sua autoria a célebre frase “de cada um segundo a sua capacidade, a cada capacidade segundo as suas obras”. Sendo um dos esteios do socialismo do século XIX, advogava que a principal missão do cristianismo era assegurar a fraternidade humana universal.
[3] Nascido em 1772, falecendo em 1837, foi um dos “pais” do socialismo francês, sendo sobretudo um associacionista.
[4] Nascido em 1771, falecendo em 1858, Owen foi um industrial inglês que procurou transformar as suas empresas em verdadeiras comunidades. Lançou os fundamentos do cooperativismo e do sindicalismo contemporâneo.
[5] Aldous Leonard Huxley, nascido em 1894, falecendo em 1963, foi um ensaísta e romancista inglês, que se celebrizou principalmente através da publicação em 1932 da obra “Brave New World”, uma sátira mordaz e amarga a uma sociedade ferozmente controlada e submetida à tecnologia.
[6] Pseudónimo de Eric Blair, nascido em 1903, falecendo em 1950, foi um extraordinário ensaista e romancista, denunciando os perigos quer do capitalismo quer do socialismo totalitário.
[7] Kurt Vonnegut, nascido em 1922, é um romancista e novelista norte-americano, que tem a particularidade de combinar ficção científica com elevadas doses de crítica social. A obra citada no texto, “Player Piano”, publicada em 1952, é um excelente exemplo desse estilo literário, assentando a sua temática na crítica a uma sociedade desumanizada, completamente subjugada por uma ditadura da tecnologia.
[8] “A arte é uma expressão do Belo e o artista um seu criador” CUNHAL, Álvaro, “A Arte, o Artista e a Sociedade”, Edit. Caminho, 1996, p.1.
[9] “A arte é porém alguma coisa mais que o acto e o processo da criação artística. A obra de arte (vive para além da intervenção do artista), torna-se, intencionalmente ou não, um meio de comunicação entre seres humanos, um valor inseparável da sociedade e do qual também a sociedade é inseparável. Uma vez na sociedade, a obra de arte é um elemento e um valor social. Tem uma existência própria, e uma influência própria, pelo que não é necessariamente pelo que o artista queria que fosse. Sendo assim, não se pode contestar o apelo a que os artistas com as suas obras, dêem uma contribuição à sociedade, contribuam com as suas obras, tanto no concreto e conjuntural como numa perspectiva mais longa, para a compreensão, a consciência, o gosto pela vida, o bem estar e a felicidade do ser humano” CUNHAL, Álvaro, in op. cit., pgs. 202-203.
[10] “Agostinho é o único padre da Igreja a quem continua a ser reconhecida autoridade espiritual. Pagãos e cristãos, filósofos e teólogos, sem distinção de correntes e de confissões, todos se ocupam dos seus escritos e todos se confrontam com a sua pessoa. Agostinho exerce simultaneamente uma influência directa sobre a Igreja do Ocidente, cuja tradição assimila, consciente ou inconscientemente, a sua teologia, e, através desta, sobre a cultura, em termos globais, com maiores ou menores alterações e interrupções...Agostinho é um génio, é o único padre da Igreja que pode reclamar o título atribuído pela Modernidade às pessoas célebres” COMPENHAUSEN, H. von, “Lateinische Kirchenvater”, Estugarda, 1960, in “Os Grandes Pensadores do Cristianismo”, KUNG, Hans, Editorial Presença, 1999, p. 17.
[11] MUNFORD, Lewis, “A Cidade na História”, Marins Fontes, 1991, p.s 197 a 198.
[12] Nascido em 1895 e falecendo em 1990, Lewis Munford, foi um extraordinário historiador cultural, um filósofo social, uma autoridade em arquitectura e em urbanismo. Na sua obra “The Culture of Cities”, publicada em 1938, assumiu-se como um crítico da sociedade moderna, que na sua opinião se caracterizava por uma excessiva dependência das questões tecnológicas.Com a sua obra “A Cidade na História”, ganhou em 1962 o prestigiado prémio norte-americano National Book Award.
[13] Ferdinand de Saussure, nascido em 1857, falecendo em 1913, foi um linguista suíço, inspirador do Estruturalismo Linguístico que parte do princípio de que a língua é uma estrutura orgânica, no interior da qual se estabelecem múltiplas relações entre os vários elementos constitutivos.
[14] ARGAN, Julio Carlo, FAGIOLO, Maurizio, “Guia de História de Arte”, IUEE, 1992, p.s 73 a 74.
[15] DRONKE, Peter, “A Simbólica do Espaço”, Editora Espaço, 1991, p. 29.
[16] “As cidades ideais sempre nos pareceram mais de que simples retratos imaginários redutíveis a factores sócio-culturais, históricos ou psicológicos. Para além dessas influências – que, sem dúvida, não são desdenháveis – há tentativas que possuem um propósito comum: expressar a relação pura do homem com a humanidade, na forma de uma ordem social que, nos seus limites, perde o carácter de uma solução política e revela o seu carácter meta-empírico”. MUCAHIELLI, Roger, “Le Mythe de Cité Idéale”, Presses Universitaires de France, 1961, pags. 7-8.
[17] “Todos os modelos ideais têm esta mesma propriedade de deter a vida, mesmo de a negar, daí que nada pode ser mais funesto para a sociedade humana do que realizar esses ideais”. MUNFORD, Lewis, “A Utopia, a Cidade e a Máquina”, in MANUEL, E. Frank, “Utopías y Pensamiento Utópico”, Espasa Universitaria, 1982, p. 35.

...de alguém que admiro e respeito profundamente...

“As ideias nunca morrem. Para bem ou para mal, é assim. Os homens passam. Frustrados ou contentes. Num caso e noutro, com razão ou sem ela. Mas as ideias duram. Independentes dos semeadores. Caminhando fortes a criar adeptos. Torturadas e presas, à espera de outro tempo. Mas vivas. Para sempre. Por vezes levam séculos de clandestinidade. Ou de silenciosa clausura. Pacientes na espera. Tenazes na busca. Firmes no propósito. A ver passar outras ideias. Com gente a morrer por elas. Ou por causa delas. Os homens transitórios. Vencidos pela natureza provisória. A fazer projectos sem medida. Mas com o tempo medido. Partindo sempre antes. A acção em meio. Ou mal começada. Ou simplesmente projectada. Ou mal sonhada ainda. Tudo um pouco além da mão estendida. Faltando um esforço. Pequeno embora. Um passo curto. O toque dos dedos. Mas impossível. Nem mais um passo, nem mais um esforço, nem mais um toque. Porque a vida falta. O provisório manda. E não faz inventários. Não concede prazos. Não dá adiamentos. Fica porém o projecto. A ideia. O espólio. A presença constante. Indestrutível. Desafiando. Indiferente à força. À espera e sem pressa. Porque toda a força cansa. Indiferente às censuras. Porque um dia virá. Nem cedo nem tarde. É sempre o momento. Para um bem e para o mal. A ideia nascida já não morre. Haverá uma brecha. Larga bastante para que passe. Haverá um homem nascido para ela. Alargando assim o transitório. E outro, e mais outro. De alma em alma. Encontrando o companheiro de tempos a tempos. Vozes que sopram e alguém escutará. Falando aos simples. Escolhendo quem não espera. Prontas para o encontro. Para novo achamento. Como as ilhas perdidas no mar e a espera. Os caminhos abertos para o veleiro de um dia. Faltando só que se dissipem as brumas. Que as madrugadas cheguem. A hora boa para encetar a caminhada. Um novo troço do caminho. Em força ou lentamente. Para de novo esperar, se necessário. Mas sempre o caminho. Depois das longas noites. Vivas e à espera. Indestrutíveis. Pacientes. Para além de todos os transitórios. Seguras. Prontas para e inevitável madrugada.” Tempo de Vésperas, MOREIRA, Adriano, Editorial Notícias.

terça-feira, 4 de março de 2008

sábado, 1 de março de 2008

...a displicência da pomba e a relatividade dos estados de alma...




...doze palavras...



a propósito DISTO

...a renúncia do Cavaleiro...


Já percorri freneticamente todo o meu labirinto até que me conformei com a não saída.
Já desafiei o medo para lá do perigo de vida, por recusar viver a vida de outra forma.
Já vivi todas as paixões e conquistei o essencial prazer do amor.
Já percebi que as causas que abracei não se ganham mas merecem a persistência da minha luta.
Já substitui a avidez pelo ter pelo o encantamento do conhecer.
Já desmontei do cavalo, despi a armadura, tirei o elmo, pousei a espada e fiz-me pacífico.
Agora só me falta amputar alguma da soberba razão para reaprender a Fé.
Por tudo isso, meus Senhores e Pares, renuncio ao meu estado e condição.
Serei, a partir de hoje, só eu.
Eu e as minhas memórias.
Guardar-vos-ei na minha alma.