sexta-feira, 7 de março de 2008

...do meu baú..o Barroco a Utopia do Poder...


Barroco – uma utopia do poder

É sobretudo com o Barroco que a utopia, vinculada ao exercício do poder, surge enquanto uma constante avassaladora e sufocante em muitos aspectos.
Caracterizado pela quase sistemática teatralização de todas as facetas da actividade humana, quer ao nível dos comportamentos – individuais e colectivos – quer ao nível dos processos produtivos, fez com que a cenografia, a exímia arte de criar espaços bem definidos – quanto aos limites e aos objectivos -, mas absolutamente ilusórios quanto à sua verdadeira natureza, invadisse quase todos os domínios das realizações humanas.
A ideologia que emerge e será preponderante neste período, é sem dúvida o Absolutismo, que na sua essência mais não é que um modelo utópico, equacionando um exercício discricionário do poder, através de um mandato incontestável e inquestionável, por delegação divina. Não interessará muito aqui abordar as variadas tipologias de fundamentação – e muitas foram as adoptadas, umas mais de natureza contratual, outras menos de natureza contratual -, mas sim chamar a atenção para alguns aspectos reveladores da omnipresença utópica nesta reformulada concepção do poder.
Luís XIV
[1] é um dos principais encenadores e intérpretes – ou actores -, se não o principal, da utopia absolutista[2].
Uma das facetas pouco exploradas da acção desse rei francês, é a abordagem da luta verdadeiramente titânica que ele travou com uma cidade: Paris
[3].
Quando um homem tenta vencer uma cidade, prossegue uma louca quimera. Sentindo-se ameaçado pela alma rebelde parisiense, e querendo, ao mesmo tempo, reunir à sua volta, para melhor os controlar, todos os Grandes de França, decidiu erigir um palácio-complexo, uma verdadeira urbe para a sua Corte, afastando-se assim da Cidade Luz, ocultando-se numa penumbra propícia à mitificação.
“O Palácio atraía as novas avenidas da cidade, assim como o próprio governante reunia o poder político que outrora estivera disperso entre a multidão de famílias feudais e corporações municipais. Todas as principais avenidas, conduziam ao Palácio”
[4].
Versalhes, constituído pelo Palácio e por uma enorme área envolvente, dotado de uma planta subjugada a um poderosíssimo vértice polarizador, com imensas semelhanças com a germânica Karlsruhe, é um modelo urbano simultaneamente fractal e unitário, onde cada um dos elementos constitutivos potenciam desenvolvimentos particulares, mas onde jamais a unicidade de todo o complexo – lido na sua globalidade – é posta em causa.
Versalhes é uma verdadeira orgia da perspectiva, onde o ponto de fuga se confunde no horizonte com o céu, e para além dos limites onde alcança a vista do comum mortal, encontra-se, omnipresente, a imagem divina.
Em Versalhes, a sobriedade da linha recta, assume uma força ascendente em que a possibilidade de a contrariar não existe
[5].
“Lei, ordem, uniformidade – tudo isto são, pois, produtos da capital barroca, mas a lei existe para confirmar a situação e assegurar a posição das classes privilegiadas, a ordem é a ordem mecânica, baseada...na sujeição ao Príncipe reinante...O antigo deus da cidade tornava-se agora uma divindade nacional...Aquele deus renovou as demandas originais de tributos e sangue humano. Le Roi Soleil aproximou-se tanto quanto permitia a teologia cristã de ser um verdadeiro Deus-Sol
[6].
O combate de Luís XIV, contra a projecção de Paris, foi inglório. Versalhes, mesmo em vida do soberano, nunca cumpriu o objectivo de anular a capacidade do velho burgo. Pensar que uma “gaiola”, mesmo que dourada, poderia alguma vez derrotar um organismo vivo, com a sua existência e permanência fundadas no próprio fluir dos tempos, dotado de alma e de uma vontade de todos, e ao mesmo tempo de ninguém, não passou de uma mera utopia de curta duração e de nenhuma validade.
A desordem própria das cidades não é nenhum caos gratuito e não se elimina por decreto, o máximo que se lhe pode fazer é balizá-la, criando-lhe condições para o seu próprio progresso, para a optimização da sua eficácia funcional.

[1] Luís XIV (n. 1638, m. 1715, reinou em França de 1643 a 1715): filho de Luís XIII, o Justo, sua mãe, Ana de Áustria, que confiou o governo ao cardeal Mazarino, que o exerceu até à sua morte (1661). A partir de então, o monarca exerceu pessoalmente o poder, convertendo-se no protótipo do monarca absoluto...”,DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO ALFA,, Publicações Alfa, S.A, 1992, p. 703.
[2] “O interesse do Estado deve passar acima de tudo. Quando temos em vista o Estado, trabalhamos para nós. O bem de um faz a glória do outro”., LUÍS XIV, citado por TOUCHARD, Jean, “História das Ideias Políticas”, vol II, Publicações Europa-América, 1991, p. 121.
[3] “Paris...recentemente traída pelo seu rei...em proveito do monstro de Versalhes...”, CHAUNU, Pierre, “A Civilização da Europa Clássica”, vol II, Editorial Estampa, 1993, p. 57.
[4] MUNFORD, Lewis, “A Cidade na História”, Martins Fontes, 1991, p. 421-422.
[5] “Versalhes, ultrapassagem dialéctica e clássica, com o triunfo sem limites da linha recta, a economia de meios e a harmonia matemática das massas...barroco, diga-se pela desmesura...Fuga das linhas rectas até ao infinito.”, CHAUNU, Pierre, “A Civilização da Europa Clássica”, vol II, Editorial Estampa, 1993, p. 57.
[6] MUNFORD, Lewis, “A Cidade na História”, Martins Fontes, 1991, p. 399.

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