O uso do termo “utopia” – derivado do grego e que significa à letra “não-lugar”, mas que pode simultaneamente ser entendido no sentido de eu-topia (“bom-lugar”[1]) – para designar uma cidade perfeita, surgiu com a publicação da obra de Tomás Morus “A Utopia” (1516), que descreve o modo de vida das pessoas, caracteriza instituições político-sociais e idealiza um espaço de vida específico numa ilha imaginária. A “Utopia” de Morus teve um grande impacto no seu tempo e uma influência que perdura até aos nossos dias, de tal forma que o termo “utopia” foi subsequentemente adoptado e adaptado a inúmeros conceitos propostos, definidos e desenvolvidos por muitos formadores sociais e também por inúmeros visionários.
Utopias poderão ser concepções de sociedades ideais, nas quais os problemas de índole social, político e económico, que de uma forma ou de outra, com maior ou menor intensidade, sempre afligiram a humanidade, foram definitivamente erradicados, em que as instituições, nomeadamente o(s) estado(s), encontram na promoção do bem e da felicidade colectiva as suas únicas e exclusivas funções.
A “República” de Platão, escrita século IV aC, é usualmente encarada como a mais antiga e mais vasta obra do género da chamada literatura utópica, embora o bíblico Jardim do Eden possa também ser descrito e entendido como uma utopia.
Como exemplo de outras publicações famosas e socialmente influentes, em que a temática utópica é uma constante, podemos referir “A Cidade do Sol” (Campanela, 1623), “A Nova Atlântida” (Francis Bacon, 1627), “Oceana” (James Hamington, 1656), “Esenhon” (Samuel Butler, 1872), “Looking Backward” (Edward Bellamy, 1888), “News from Nowhere” (1821), “Modern Utopia” (H.G. Wells, 1905), “Walden Two” (1848) do behaviourista Skinner, entre muitas outras e para não referir inúmeros ensaios, contos e mesmo romances deste século.
Durante o século XIX, foram feitas inúmeras e esforçadas tentativas para estabelecer “comunidades utópicas”. A maior parte delas foram fruto do advento do socialismo utópico, tais como as preconizadas pelo Conde de Saint Simon[2], por Charles Fourrier[3], por Étiénne Cabet – em França -, por Robert Owens[4] – no Reino Unido e EUA – e por Robert Dale Owen (filho do anterior) nos EUA.
Embora diferindo consideravelmente entre eles nas suas visões específicas, estes “pensadores utópicos” acreditaram que sociedades ideais poderiam ser estabelecidas e concretizadas sem grandes dificuldades, criadas a partir de pequenas comunidades constituídas pelos seus seguidores. Saint Simon, aliava a felicidade futura ao crescimento industrial. Fourrier, pelo contrário, advogava pequenas comunidades essencialmente agrícolas, em que as pessoas viveriam em pequenos, mas auto-suficientes, “falanstérios”, livres de constrangimentos próprios e impostos pela “civilização”.
“Colónias” experimentais, baseadas nas teorias destes filósofos, foram ensaiadas na Europa e nos EUA, sendo de salientar as famosas comunidades cooperantes “New Harmony” e “New Lanark”, fundadas por Robert Owen.
A maior parte destas comunidades experimentais não durou muito tempo, com a excepção da “Comunidade de Oneida” – implantada no estado americano de New York – que subsistiu entre 1848 e 1881.
Nos meados do século XIX, os socialistas utópicos foram, paulatinamente, eclipsados por movimentos se não mais militantes pelo menos mais radicais.
Mais recentemente, a literatura tem produzido obras centradas na temática das utopias, cientificamente aplicadas em sociedades extremamente avançadas na perspectiva tecnológica. Curiosamente também surgiu um género literário que podemos classificar de “anti-utópico” de que – por exemplo – Aldous Huxley[5] (“O Admirável Mundo Novo”), George Orwell[6] (“1984”), Kurt Vonnegut[7] (“Player Piano”) e também Gunther Grass (em determinada medida), são exímios.
A ligação da problemática das “utopias” à problemática artística não é difícil de estabelecer, se entendermos o fenómeno artístico como a incessante busca da expressão do belo[8] ou como uma tentativa de narração do desespero e angústia da aventura da humanidade ao longo dos séculos, ou então como a expressão plástica do feio, do grotesco, do mau, do mal, do horroroso, do imoral, do amoral e do injusto, efectuado como uma gritante e poderosa reacção de denúncia de um mundo também quase sempre feio, grotesco e pérfido.
Ambas as perspectivas, sintetizadas pelos binómios forma/conteúdo, expressão estética do belo/denúncia permanente de qualquer que seja a escravidão, encerram sempre – mesmo que não ao nível do consciente – uma concepção utópica que se pressente ou então que ardentemente se deseja[9].
O desejo do belo absoluto, manifestado pela construção e elaboração plástica ou pela vontade da descodificação dos conteúdos, no fundo as raisons de vivre mais plausíveis do artista corajoso, são processos ou atitudes que, inegavelmente, mergulham de forma profunda na “Utopia”.
É evidente que as “utopias” representam uma inquietação individual ou colectiva perante o presente – que segundo Santo Agostinho[10] (n. 354, m. 430) nem sequer existe – e o devir civilizacional. Representam sempre, também, a expressão mais ou menos explícita de um desajustamento e são, frequentemente, reflexos do medo do entendimento e aceitação não só da própria liberdade como a da heterodoxia do progresso. A busca alucinada da beleza e também da perfeição, pode significar cegueira absoluta ou mais atroz das incapacidades de comunicar.
A paradoxal concretização de um mundo ideal, forjado por uma mente, que até pode ser – quase sempre o é – bem intencionada, mas que é ao mesmo tempo angustiantemente solitária, significaria o atingimento de um universo redutor, imóvel e escravizante.
“Platão, erradamente, tomou os pontos ideias da bússola como destinos reais. Para ele, o bem e o mal eram ideias eternas, imutáveis e separadas: uma vez implantadas, jamais precisam mudar. Por medo de leis, por meio de uma rigorosa censura, através da firme disciplina, por meio de controles totalitários isolados pelo sigilo, propunha ele remover o mal e manter o bem. Pouco compreendeu que os próprios instrumentos que escolhera inverteriam esse processo. O que não compreendeu, mais ainda, foi que embora o bem e o mal sejam pontos fixos da bússola moral, as correntes da própria vida muitas vezes invertem sua polaridade. O mal trará bençãos – como diz Emerson – e o gelo queimará. Um bem procurado de maneira por demais inflexível pode transformar-se num mal granítico, estabelecendo um limite ao desenvolvimento maior; ao passo que o erro e a falsidade, quando reconhecidos e desafiados, podem, nesse próprio acto, proporcionar energia para um movimento à frente.
Como um moldador de botões, Platão procurou fundir a vida num molde preparado: o ouro num, o bronze noutro, o barato chumbo num terceiro. Não tinha em si qualquer coisa do jardineiro ou do biólogo experimental, que selecciona a semente, planta-a no solo correcto, com a devida exposição ao sol; em suma, coopera com a natureza enquanto procura melhorar suas formas selvagens, tendo em vista o consumo humano – não procurando a perfeição num substituto mecânico, arbitrariamente medido e configurado.
Platão subestimava os estímulos e desafios vitais do crescimento: a variedade, a desordem, o conflito, a tensão, a fraqueza e até mesmo o fracasso temporário. Cada uma dessas coisas, quando não se petrifica num padrão fixo pode produzir uma comunidade muito mais desejável do que qualquer forma de conformidade, seja essa conformidade imposta pelos executivos filisteus de um moderno órgão de governo, por uma corporação de negócios ajudada por computadores, ou pelo maior pensador que Atenas ajudara a produzir”[11].
A “utopia” encarada enquanto projecto ou então enquanto programa que se tenta concretizar, seja na elaboração de um manual filosófico seja no planeamento de uma urbe, em que não só as estruturas físicas são esquematizadas mas também as próprias relações interpessoais e as relações entre as pessoas e a multiplicidade das estruturas, só perdurará na memória do homem, enquanto referência intemporal, se ela própria for portadora das condições que a ponham, de per si, em causa, possibilitando o progresso relacional, social, cultural, espiritual e até mesmo económico, ou seja, a “utopia” só se transcenderá para além de um mero exercício, se encerrar em si mesmo o vírus da sua própria adulteração, se a quimérica passagem da sua potência em acto representar não a quietude programática que a baliza e corporiza, mas sim o desassossego empreendedor e criador, daqueles que tiveram o privilégio, mesmo que num ápice, de a terem sentido.
A “utopia” da absoluta harmonia, que se vislumbra no traçado de uma praça de um arquitecto renascentista, está condenada pelo derradeiro destino funcional do próprio espaço pensado: um pólo gerador de vida de um núcleo urbano, um pólo criador e enquadrador de muitas e multifacetadas vivências.
É impossível desligar a utopia da arte e desligar a arte da cidade. A “utopia” é a alma mater da obra de arte e “a cidade favorece a arte, é a própria arte (Lewis Munford[12])...A origem do carácter artístico implícito da cidade lembra o carácter artístico da linguagem, indicado por Saussure[13]: a cidade é intrinsecamente artística...Todavia, sempre existe uma cidade ideal dentro ou sob a cidade real, distinta desta como o mundo do pensamento o é dos factos...A ideia da cidade ideal está profundamente arreigada em todos os períodos históricos, sempre inerente ao carácter sacro anexo à instituição e confirmado pela contraposição recorrente entre cidade metafísica ou celeste e cidade terrena ou humana”[14].
A este propósito, Peter Dronke (Universidade de Cambridge), sobre Santo Agostinho e o seu pensamento magistralmente traduzido na incontornável obra para o estudo do pensamento ocidental, “A Cidade de Deus”, afirma: “Também Santo Agostinho... tende a falar de duas cidades, uma abençoada e outra perversa, Jerusalém e Babilónia, que sempre coexistiram na terra e aí estiveram em conflito: num vasto mundo habitado por tantos povos diferentes, com religiões e costumes diversos, infinitamente divididos em sua língua, armas e roupagens, não surgiram no entanto, mais de duas espécies de seres humanos, que nós poderíamos chamar duas cidades...Santo Agostinho tende a apresentar o contraste entre estas cidades em tons absolutos: Dois amores, por conseguinte, deram lugar a duas cidades: o amor de si próprio com desprezo de Deus à cidade terrena; o amor de Deus com desprezo de si próprio à cidade celeste. A primeira cidade busca a glória nos homens; para a segunda Deus como testemunho da consciência é a maior das glórias. Em resumo, uma cidade ufana-se de si própria, a outra de Deus...Nesta não há a sabedoria do homem, mas somente devoção pela qual o verdadeiro Deus é devidamente adorado, aguardando a recompensa não apenas entre a comunidade dos santos mas também entre a dos anjos, para que Deus possa ser todo em tudo.
A cidade terrena, por outro lado, tem conflitos que lhe são intrínsecos: A cidade terrena que não será perpétua, tem aqui o seu bem. Mas com esse bem não pode evitar o sofrimento dos seus namorados, esta cidade é com frequência dividida por discórdias, hostilidades e lutas, em busca de vitórias mortíferas.
A cidade celeste é a glorificação última da Igreja: é a cidade da santa visão de S. João. Homens e anjos viverão nela sem inveja, e nela será alcançada a liberdade perfeita: por conseguinte, o livre-arbítrio dessa cidade será uno de todos e inseparável em cada um, libertado de todo o mal e pleno de todo o bem, deleitando-se inesgotavelmente no júbilo das alegrias eternas, esquecendo a dor”[15].
As “utopias”, revelam claramente características comuns e antigas. Todas expressam um maravilhoso dinamismo intrínseco no seu formular, traduzida na vontade férrea na provocação de rupturas e um enorme imobilismo no programa expresso, sendo construções rígidas, cristalizadas num tempo e num espaço perfeitamente definido e delimitado.
Não é por acaso que as principais referências utópicas explícitas, com destaque às efectuadas por Morus e por Campanela, ou são ilhas ou cidadelas rodeadas, encerradas, em fortes muralhas, quais casulos estanques.
Sendo sempre as películas em negativo das sociedades que inexoravelmente as determinam, as “utopias” encerram em si mesmo a expressão de valores sonhados como potenciadores de um progresso. Buscam um homem novo que necessita de um espaço novo para viver, com o objectivo de uma realização que não é pessoal mas sim colectiva[16].
Esse espaço novo, que não pode ser dissociado dos valores e princípios filosóficos que o inspiraram, exprimem soluções de arquitectura espacial e de edificação, que não deixaram de influenciar o desenvolvimento das concepções urbanas.
Com Morus e Campanela podemos retirar, quase por oposição, uma imagem muito nítida de quais foram as expectativas não satisfeitas do Renascimento e também constatar o impacto ao nível das mentalidades quer da Reforma quer da Reforma Católica.
As suas constantes buscas de auxílio numa visão eminentemente clássica do espaço, sobretudo do espaço urbano, em que nem o cardo nem o decumanos estão ausentes, nem faltam a acrópole nem o ágora, onde as concepções construtivas são em grande medida, indubitavelmente, greco-romanas, a começar pela profusão de colunas e a terminar nos próprios materiais de revestimento – os pedagógicos frescos, mosaicos, etc. -, onde as estruturas de utilidade pública como os banhos, termas, a configuração das redes de saneamento e de fornecimento de água, apreendidas directamente de Vitruvius ou indirectamente através dos tratadistas do Renascimento, que mais não fizeram dos que as recuperar – sem verdadeiramente reformular ou inovar as soluções antigas -, são uma forma de reacção feita conflito com a realidade brutal de uma época de perseguições político-religiosas, onde a artilharia e o consequente desenvolvimento da piro-balística, determinaram forçosamente o encontrar de soluções pragmáticas, muito menos idílicas mas muito mais eficazes, que apesar de tudo são incorporadas incoerentemente, atabalhoadamente, no projecto utópico, numa estranha e maravilhosa mistura transportada para o mesmo imaginário.
Assim, o imaginário utópico, para além das roupagens ideológico-filosóficas, traduz um espaço que se transforma num verdadeiro cadinho de referências, muitas vezes antagónicas, tantas vezes inconciliáveis. A sobriedade e a – sob muitos aspectos divinas – universalidades da linha recta e do círculo perfeito, são subjugadas perante a practibilidade das soluções. Não é por acaso que nas obras de Morus e Campanela a questão espacial física – seja ao nível da expressão da planta urbana seja ao nível das manifestações arquitectónicas – nos surge, numa primeira fase, como de importância fundamental, sendo mesmo a problemática de início de cada uma das “utopias” retratadas, e à medida que as duas construções mentais vão evoluindo e a plasmação das questões eminentemente sociais se concretiza, vai-se paulatinamente esbatendo e em muitos aspectos tornando-se moldura inadequada ao próprio fluir das “histórias”.
O espaço urbano utópico – na planta e na arquitectura – é abstractamente simples, depurado quase em absoluto de artificialismos aparentes, caracterizado pelo primado inflexível da recta e das formas rígidas, em que o suficiente é sempre bastante, tal como um regularíssimo e asséptico invólucro de medicamento.
A beleza voluntariamente materializada no espaço utópico, só interessa e surge se for funcionalmente pedagógica – aspecto gritante em Campanela – e paradoxalmente acontece através da sobriedade excessiva e inumana das estruturas e só na medida em que o despojamento poderá ser belo.
No espaço utópico, não verdadeiramente lugar para a possibilidade, mesmo que remota, da criação e da realização individual, tudo é concebido em função do colectivo, do corpo total comunitário, que não admite excrescências ou diversidade porque não vê nela qualquer necessidade, como para o homem é manifestamente desnecessário três pernas ou três braços.
As fontes e os lagos existem não para embelezarem ou enquadrarem, mas simplesmente para saciarem a sede e lavarem os corpos e as coisas. A rua “utópica” não é rasgada para que o indivíduo a percorra, mas para que a comunidade nela flua sem chocar, sem contactar.
Apesar da beleza programática emanente de uma ordem pensada para garantir a igualdade, não é possível escapar ao sentimento de horror perante a perceptível falta de liberdade, perante uma escravidão tornada perpétua, que traduziria para o ser humano a sua concretização, condenado a um mesmo papel, a uma mesma rotina, a uma mesma paisagem pelos séculos fora[17].
As “utopias”, sobretudo as renascentistas, são na verdade parábolas que pouco evoluíram em termos de conteúdo último das parábolas das Escrituras.
Demasiadamente simplistas, ingénuas muitas vezes, as “utopias” não são na verdade portadoras eficazes das sementes da mudança, são na sua maioria mesclas de sonhos da sua contemporaneidade, basicamente repescados nas reminiscências de um passado mitificado, fruto de processos mentais que fluem a velocidade de caracol e que são ultrapassadas pela própria dinâmica social.
As mais importantes concepções utópicas foram idealizadas em plena época das Descobertas e foram, apesar disso, incapazes de assimilar as verdadeiras riquezas resultantes do extraordinário alargamento dos horizontes, apenas buscando o pitoresco e o exótico, não conseguindo libertar-se da tremenda força e peso de uma herança grega, judaica e cristã, da lógica aristotélica e também de um permanente medo do fogo inquisitorial, real ou reminiscente, que continuou a consumir e a tolher consciências até pelo menos ao dealbar do século XX.
Esse tremendo desaproveitamento do movimento das Descobertas, não aconteceu apenas ao nível das concepções utópicas, reflectindo-se muito mais gravosamente nas universidades, que à velha escolástica fizeram suceder uma “nova” escolástica.
[1] ARGAN, Julio Carlo, FAGIOLO, Maurizio, Guia de História de Arte, IUEE, 1992, p. 157.
[2] Saint-Simon, Conde de, nasceu em 1760 e faleceu em 1825. Tendo participado na guerra da independência americana (1779-1782), aderiu à Revolução Francesa (1789). Foi um dos primeiros teóricos da sociedade industrial. É da sua autoria a célebre frase “de cada um segundo a sua capacidade, a cada capacidade segundo as suas obras”. Sendo um dos esteios do socialismo do século XIX, advogava que a principal missão do cristianismo era assegurar a fraternidade humana universal.
[3] Nascido em 1772, falecendo em 1837, foi um dos “pais” do socialismo francês, sendo sobretudo um associacionista.
[4] Nascido em 1771, falecendo em 1858, Owen foi um industrial inglês que procurou transformar as suas empresas em verdadeiras comunidades. Lançou os fundamentos do cooperativismo e do sindicalismo contemporâneo.
[5] Aldous Leonard Huxley, nascido em 1894, falecendo em 1963, foi um ensaísta e romancista inglês, que se celebrizou principalmente através da publicação em 1932 da obra “Brave New World”, uma sátira mordaz e amarga a uma sociedade ferozmente controlada e submetida à tecnologia.
[6] Pseudónimo de Eric Blair, nascido em 1903, falecendo em 1950, foi um extraordinário ensaista e romancista, denunciando os perigos quer do capitalismo quer do socialismo totalitário.
[7] Kurt Vonnegut, nascido em 1922, é um romancista e novelista norte-americano, que tem a particularidade de combinar ficção científica com elevadas doses de crítica social. A obra citada no texto, “Player Piano”, publicada em 1952, é um excelente exemplo desse estilo literário, assentando a sua temática na crítica a uma sociedade desumanizada, completamente subjugada por uma ditadura da tecnologia.
[8] “A arte é uma expressão do Belo e o artista um seu criador” CUNHAL, Álvaro, “A Arte, o Artista e a Sociedade”, Edit. Caminho, 1996, p.1.
[9] “A arte é porém alguma coisa mais que o acto e o processo da criação artística. A obra de arte (vive para além da intervenção do artista), torna-se, intencionalmente ou não, um meio de comunicação entre seres humanos, um valor inseparável da sociedade e do qual também a sociedade é inseparável. Uma vez na sociedade, a obra de arte é um elemento e um valor social. Tem uma existência própria, e uma influência própria, pelo que não é necessariamente pelo que o artista queria que fosse. Sendo assim, não se pode contestar o apelo a que os artistas com as suas obras, dêem uma contribuição à sociedade, contribuam com as suas obras, tanto no concreto e conjuntural como numa perspectiva mais longa, para a compreensão, a consciência, o gosto pela vida, o bem estar e a felicidade do ser humano” CUNHAL, Álvaro, in op. cit., pgs. 202-203.
[10] “Agostinho é o único padre da Igreja a quem continua a ser reconhecida autoridade espiritual. Pagãos e cristãos, filósofos e teólogos, sem distinção de correntes e de confissões, todos se ocupam dos seus escritos e todos se confrontam com a sua pessoa. Agostinho exerce simultaneamente uma influência directa sobre a Igreja do Ocidente, cuja tradição assimila, consciente ou inconscientemente, a sua teologia, e, através desta, sobre a cultura, em termos globais, com maiores ou menores alterações e interrupções...Agostinho é um génio, é o único padre da Igreja que pode reclamar o título atribuído pela Modernidade às pessoas célebres” COMPENHAUSEN, H. von, “Lateinische Kirchenvater”, Estugarda, 1960, in “Os Grandes Pensadores do Cristianismo”, KUNG, Hans, Editorial Presença, 1999, p. 17.
[11] MUNFORD, Lewis, “A Cidade na História”, Marins Fontes, 1991, p.s 197 a 198.
[12] Nascido em 1895 e falecendo em 1990, Lewis Munford, foi um extraordinário historiador cultural, um filósofo social, uma autoridade em arquitectura e em urbanismo. Na sua obra “The Culture of Cities”, publicada em 1938, assumiu-se como um crítico da sociedade moderna, que na sua opinião se caracterizava por uma excessiva dependência das questões tecnológicas.Com a sua obra “A Cidade na História”, ganhou em 1962 o prestigiado prémio norte-americano National Book Award.
[13] Ferdinand de Saussure, nascido em 1857, falecendo em 1913, foi um linguista suíço, inspirador do Estruturalismo Linguístico que parte do princípio de que a língua é uma estrutura orgânica, no interior da qual se estabelecem múltiplas relações entre os vários elementos constitutivos.
[14] ARGAN, Julio Carlo, FAGIOLO, Maurizio, “Guia de História de Arte”, IUEE, 1992, p.s 73 a 74.
[15] DRONKE, Peter, “A Simbólica do Espaço”, Editora Espaço, 1991, p. 29.
[16] “As cidades ideais sempre nos pareceram mais de que simples retratos imaginários redutíveis a factores sócio-culturais, históricos ou psicológicos. Para além dessas influências – que, sem dúvida, não são desdenháveis – há tentativas que possuem um propósito comum: expressar a relação pura do homem com a humanidade, na forma de uma ordem social que, nos seus limites, perde o carácter de uma solução política e revela o seu carácter meta-empírico”. MUCAHIELLI, Roger, “Le Mythe de Cité Idéale”, Presses Universitaires de France, 1961, pags. 7-8.
[17] “Todos os modelos ideais têm esta mesma propriedade de deter a vida, mesmo de a negar, daí que nada pode ser mais funesto para a sociedade humana do que realizar esses ideais”. MUNFORD, Lewis, “A Utopia, a Cidade e a Máquina”, in MANUEL, E. Frank, “Utopías y Pensamiento Utópico”, Espasa Universitaria, 1982, p. 35.
Utopias poderão ser concepções de sociedades ideais, nas quais os problemas de índole social, político e económico, que de uma forma ou de outra, com maior ou menor intensidade, sempre afligiram a humanidade, foram definitivamente erradicados, em que as instituições, nomeadamente o(s) estado(s), encontram na promoção do bem e da felicidade colectiva as suas únicas e exclusivas funções.
A “República” de Platão, escrita século IV aC, é usualmente encarada como a mais antiga e mais vasta obra do género da chamada literatura utópica, embora o bíblico Jardim do Eden possa também ser descrito e entendido como uma utopia.
Como exemplo de outras publicações famosas e socialmente influentes, em que a temática utópica é uma constante, podemos referir “A Cidade do Sol” (Campanela, 1623), “A Nova Atlântida” (Francis Bacon, 1627), “Oceana” (James Hamington, 1656), “Esenhon” (Samuel Butler, 1872), “Looking Backward” (Edward Bellamy, 1888), “News from Nowhere” (1821), “Modern Utopia” (H.G. Wells, 1905), “Walden Two” (1848) do behaviourista Skinner, entre muitas outras e para não referir inúmeros ensaios, contos e mesmo romances deste século.
Durante o século XIX, foram feitas inúmeras e esforçadas tentativas para estabelecer “comunidades utópicas”. A maior parte delas foram fruto do advento do socialismo utópico, tais como as preconizadas pelo Conde de Saint Simon[2], por Charles Fourrier[3], por Étiénne Cabet – em França -, por Robert Owens[4] – no Reino Unido e EUA – e por Robert Dale Owen (filho do anterior) nos EUA.
Embora diferindo consideravelmente entre eles nas suas visões específicas, estes “pensadores utópicos” acreditaram que sociedades ideais poderiam ser estabelecidas e concretizadas sem grandes dificuldades, criadas a partir de pequenas comunidades constituídas pelos seus seguidores. Saint Simon, aliava a felicidade futura ao crescimento industrial. Fourrier, pelo contrário, advogava pequenas comunidades essencialmente agrícolas, em que as pessoas viveriam em pequenos, mas auto-suficientes, “falanstérios”, livres de constrangimentos próprios e impostos pela “civilização”.
“Colónias” experimentais, baseadas nas teorias destes filósofos, foram ensaiadas na Europa e nos EUA, sendo de salientar as famosas comunidades cooperantes “New Harmony” e “New Lanark”, fundadas por Robert Owen.
A maior parte destas comunidades experimentais não durou muito tempo, com a excepção da “Comunidade de Oneida” – implantada no estado americano de New York – que subsistiu entre 1848 e 1881.
Nos meados do século XIX, os socialistas utópicos foram, paulatinamente, eclipsados por movimentos se não mais militantes pelo menos mais radicais.
Mais recentemente, a literatura tem produzido obras centradas na temática das utopias, cientificamente aplicadas em sociedades extremamente avançadas na perspectiva tecnológica. Curiosamente também surgiu um género literário que podemos classificar de “anti-utópico” de que – por exemplo – Aldous Huxley[5] (“O Admirável Mundo Novo”), George Orwell[6] (“1984”), Kurt Vonnegut[7] (“Player Piano”) e também Gunther Grass (em determinada medida), são exímios.
A ligação da problemática das “utopias” à problemática artística não é difícil de estabelecer, se entendermos o fenómeno artístico como a incessante busca da expressão do belo[8] ou como uma tentativa de narração do desespero e angústia da aventura da humanidade ao longo dos séculos, ou então como a expressão plástica do feio, do grotesco, do mau, do mal, do horroroso, do imoral, do amoral e do injusto, efectuado como uma gritante e poderosa reacção de denúncia de um mundo também quase sempre feio, grotesco e pérfido.
Ambas as perspectivas, sintetizadas pelos binómios forma/conteúdo, expressão estética do belo/denúncia permanente de qualquer que seja a escravidão, encerram sempre – mesmo que não ao nível do consciente – uma concepção utópica que se pressente ou então que ardentemente se deseja[9].
O desejo do belo absoluto, manifestado pela construção e elaboração plástica ou pela vontade da descodificação dos conteúdos, no fundo as raisons de vivre mais plausíveis do artista corajoso, são processos ou atitudes que, inegavelmente, mergulham de forma profunda na “Utopia”.
É evidente que as “utopias” representam uma inquietação individual ou colectiva perante o presente – que segundo Santo Agostinho[10] (n. 354, m. 430) nem sequer existe – e o devir civilizacional. Representam sempre, também, a expressão mais ou menos explícita de um desajustamento e são, frequentemente, reflexos do medo do entendimento e aceitação não só da própria liberdade como a da heterodoxia do progresso. A busca alucinada da beleza e também da perfeição, pode significar cegueira absoluta ou mais atroz das incapacidades de comunicar.
A paradoxal concretização de um mundo ideal, forjado por uma mente, que até pode ser – quase sempre o é – bem intencionada, mas que é ao mesmo tempo angustiantemente solitária, significaria o atingimento de um universo redutor, imóvel e escravizante.
“Platão, erradamente, tomou os pontos ideias da bússola como destinos reais. Para ele, o bem e o mal eram ideias eternas, imutáveis e separadas: uma vez implantadas, jamais precisam mudar. Por medo de leis, por meio de uma rigorosa censura, através da firme disciplina, por meio de controles totalitários isolados pelo sigilo, propunha ele remover o mal e manter o bem. Pouco compreendeu que os próprios instrumentos que escolhera inverteriam esse processo. O que não compreendeu, mais ainda, foi que embora o bem e o mal sejam pontos fixos da bússola moral, as correntes da própria vida muitas vezes invertem sua polaridade. O mal trará bençãos – como diz Emerson – e o gelo queimará. Um bem procurado de maneira por demais inflexível pode transformar-se num mal granítico, estabelecendo um limite ao desenvolvimento maior; ao passo que o erro e a falsidade, quando reconhecidos e desafiados, podem, nesse próprio acto, proporcionar energia para um movimento à frente.
Como um moldador de botões, Platão procurou fundir a vida num molde preparado: o ouro num, o bronze noutro, o barato chumbo num terceiro. Não tinha em si qualquer coisa do jardineiro ou do biólogo experimental, que selecciona a semente, planta-a no solo correcto, com a devida exposição ao sol; em suma, coopera com a natureza enquanto procura melhorar suas formas selvagens, tendo em vista o consumo humano – não procurando a perfeição num substituto mecânico, arbitrariamente medido e configurado.
Platão subestimava os estímulos e desafios vitais do crescimento: a variedade, a desordem, o conflito, a tensão, a fraqueza e até mesmo o fracasso temporário. Cada uma dessas coisas, quando não se petrifica num padrão fixo pode produzir uma comunidade muito mais desejável do que qualquer forma de conformidade, seja essa conformidade imposta pelos executivos filisteus de um moderno órgão de governo, por uma corporação de negócios ajudada por computadores, ou pelo maior pensador que Atenas ajudara a produzir”[11].
A “utopia” encarada enquanto projecto ou então enquanto programa que se tenta concretizar, seja na elaboração de um manual filosófico seja no planeamento de uma urbe, em que não só as estruturas físicas são esquematizadas mas também as próprias relações interpessoais e as relações entre as pessoas e a multiplicidade das estruturas, só perdurará na memória do homem, enquanto referência intemporal, se ela própria for portadora das condições que a ponham, de per si, em causa, possibilitando o progresso relacional, social, cultural, espiritual e até mesmo económico, ou seja, a “utopia” só se transcenderá para além de um mero exercício, se encerrar em si mesmo o vírus da sua própria adulteração, se a quimérica passagem da sua potência em acto representar não a quietude programática que a baliza e corporiza, mas sim o desassossego empreendedor e criador, daqueles que tiveram o privilégio, mesmo que num ápice, de a terem sentido.
A “utopia” da absoluta harmonia, que se vislumbra no traçado de uma praça de um arquitecto renascentista, está condenada pelo derradeiro destino funcional do próprio espaço pensado: um pólo gerador de vida de um núcleo urbano, um pólo criador e enquadrador de muitas e multifacetadas vivências.
É impossível desligar a utopia da arte e desligar a arte da cidade. A “utopia” é a alma mater da obra de arte e “a cidade favorece a arte, é a própria arte (Lewis Munford[12])...A origem do carácter artístico implícito da cidade lembra o carácter artístico da linguagem, indicado por Saussure[13]: a cidade é intrinsecamente artística...Todavia, sempre existe uma cidade ideal dentro ou sob a cidade real, distinta desta como o mundo do pensamento o é dos factos...A ideia da cidade ideal está profundamente arreigada em todos os períodos históricos, sempre inerente ao carácter sacro anexo à instituição e confirmado pela contraposição recorrente entre cidade metafísica ou celeste e cidade terrena ou humana”[14].
A este propósito, Peter Dronke (Universidade de Cambridge), sobre Santo Agostinho e o seu pensamento magistralmente traduzido na incontornável obra para o estudo do pensamento ocidental, “A Cidade de Deus”, afirma: “Também Santo Agostinho... tende a falar de duas cidades, uma abençoada e outra perversa, Jerusalém e Babilónia, que sempre coexistiram na terra e aí estiveram em conflito: num vasto mundo habitado por tantos povos diferentes, com religiões e costumes diversos, infinitamente divididos em sua língua, armas e roupagens, não surgiram no entanto, mais de duas espécies de seres humanos, que nós poderíamos chamar duas cidades...Santo Agostinho tende a apresentar o contraste entre estas cidades em tons absolutos: Dois amores, por conseguinte, deram lugar a duas cidades: o amor de si próprio com desprezo de Deus à cidade terrena; o amor de Deus com desprezo de si próprio à cidade celeste. A primeira cidade busca a glória nos homens; para a segunda Deus como testemunho da consciência é a maior das glórias. Em resumo, uma cidade ufana-se de si própria, a outra de Deus...Nesta não há a sabedoria do homem, mas somente devoção pela qual o verdadeiro Deus é devidamente adorado, aguardando a recompensa não apenas entre a comunidade dos santos mas também entre a dos anjos, para que Deus possa ser todo em tudo.
A cidade terrena, por outro lado, tem conflitos que lhe são intrínsecos: A cidade terrena que não será perpétua, tem aqui o seu bem. Mas com esse bem não pode evitar o sofrimento dos seus namorados, esta cidade é com frequência dividida por discórdias, hostilidades e lutas, em busca de vitórias mortíferas.
A cidade celeste é a glorificação última da Igreja: é a cidade da santa visão de S. João. Homens e anjos viverão nela sem inveja, e nela será alcançada a liberdade perfeita: por conseguinte, o livre-arbítrio dessa cidade será uno de todos e inseparável em cada um, libertado de todo o mal e pleno de todo o bem, deleitando-se inesgotavelmente no júbilo das alegrias eternas, esquecendo a dor”[15].
As “utopias”, revelam claramente características comuns e antigas. Todas expressam um maravilhoso dinamismo intrínseco no seu formular, traduzida na vontade férrea na provocação de rupturas e um enorme imobilismo no programa expresso, sendo construções rígidas, cristalizadas num tempo e num espaço perfeitamente definido e delimitado.
Não é por acaso que as principais referências utópicas explícitas, com destaque às efectuadas por Morus e por Campanela, ou são ilhas ou cidadelas rodeadas, encerradas, em fortes muralhas, quais casulos estanques.
Sendo sempre as películas em negativo das sociedades que inexoravelmente as determinam, as “utopias” encerram em si mesmo a expressão de valores sonhados como potenciadores de um progresso. Buscam um homem novo que necessita de um espaço novo para viver, com o objectivo de uma realização que não é pessoal mas sim colectiva[16].
Esse espaço novo, que não pode ser dissociado dos valores e princípios filosóficos que o inspiraram, exprimem soluções de arquitectura espacial e de edificação, que não deixaram de influenciar o desenvolvimento das concepções urbanas.
Com Morus e Campanela podemos retirar, quase por oposição, uma imagem muito nítida de quais foram as expectativas não satisfeitas do Renascimento e também constatar o impacto ao nível das mentalidades quer da Reforma quer da Reforma Católica.
As suas constantes buscas de auxílio numa visão eminentemente clássica do espaço, sobretudo do espaço urbano, em que nem o cardo nem o decumanos estão ausentes, nem faltam a acrópole nem o ágora, onde as concepções construtivas são em grande medida, indubitavelmente, greco-romanas, a começar pela profusão de colunas e a terminar nos próprios materiais de revestimento – os pedagógicos frescos, mosaicos, etc. -, onde as estruturas de utilidade pública como os banhos, termas, a configuração das redes de saneamento e de fornecimento de água, apreendidas directamente de Vitruvius ou indirectamente através dos tratadistas do Renascimento, que mais não fizeram dos que as recuperar – sem verdadeiramente reformular ou inovar as soluções antigas -, são uma forma de reacção feita conflito com a realidade brutal de uma época de perseguições político-religiosas, onde a artilharia e o consequente desenvolvimento da piro-balística, determinaram forçosamente o encontrar de soluções pragmáticas, muito menos idílicas mas muito mais eficazes, que apesar de tudo são incorporadas incoerentemente, atabalhoadamente, no projecto utópico, numa estranha e maravilhosa mistura transportada para o mesmo imaginário.
Assim, o imaginário utópico, para além das roupagens ideológico-filosóficas, traduz um espaço que se transforma num verdadeiro cadinho de referências, muitas vezes antagónicas, tantas vezes inconciliáveis. A sobriedade e a – sob muitos aspectos divinas – universalidades da linha recta e do círculo perfeito, são subjugadas perante a practibilidade das soluções. Não é por acaso que nas obras de Morus e Campanela a questão espacial física – seja ao nível da expressão da planta urbana seja ao nível das manifestações arquitectónicas – nos surge, numa primeira fase, como de importância fundamental, sendo mesmo a problemática de início de cada uma das “utopias” retratadas, e à medida que as duas construções mentais vão evoluindo e a plasmação das questões eminentemente sociais se concretiza, vai-se paulatinamente esbatendo e em muitos aspectos tornando-se moldura inadequada ao próprio fluir das “histórias”.
O espaço urbano utópico – na planta e na arquitectura – é abstractamente simples, depurado quase em absoluto de artificialismos aparentes, caracterizado pelo primado inflexível da recta e das formas rígidas, em que o suficiente é sempre bastante, tal como um regularíssimo e asséptico invólucro de medicamento.
A beleza voluntariamente materializada no espaço utópico, só interessa e surge se for funcionalmente pedagógica – aspecto gritante em Campanela – e paradoxalmente acontece através da sobriedade excessiva e inumana das estruturas e só na medida em que o despojamento poderá ser belo.
No espaço utópico, não verdadeiramente lugar para a possibilidade, mesmo que remota, da criação e da realização individual, tudo é concebido em função do colectivo, do corpo total comunitário, que não admite excrescências ou diversidade porque não vê nela qualquer necessidade, como para o homem é manifestamente desnecessário três pernas ou três braços.
As fontes e os lagos existem não para embelezarem ou enquadrarem, mas simplesmente para saciarem a sede e lavarem os corpos e as coisas. A rua “utópica” não é rasgada para que o indivíduo a percorra, mas para que a comunidade nela flua sem chocar, sem contactar.
Apesar da beleza programática emanente de uma ordem pensada para garantir a igualdade, não é possível escapar ao sentimento de horror perante a perceptível falta de liberdade, perante uma escravidão tornada perpétua, que traduziria para o ser humano a sua concretização, condenado a um mesmo papel, a uma mesma rotina, a uma mesma paisagem pelos séculos fora[17].
As “utopias”, sobretudo as renascentistas, são na verdade parábolas que pouco evoluíram em termos de conteúdo último das parábolas das Escrituras.
Demasiadamente simplistas, ingénuas muitas vezes, as “utopias” não são na verdade portadoras eficazes das sementes da mudança, são na sua maioria mesclas de sonhos da sua contemporaneidade, basicamente repescados nas reminiscências de um passado mitificado, fruto de processos mentais que fluem a velocidade de caracol e que são ultrapassadas pela própria dinâmica social.
As mais importantes concepções utópicas foram idealizadas em plena época das Descobertas e foram, apesar disso, incapazes de assimilar as verdadeiras riquezas resultantes do extraordinário alargamento dos horizontes, apenas buscando o pitoresco e o exótico, não conseguindo libertar-se da tremenda força e peso de uma herança grega, judaica e cristã, da lógica aristotélica e também de um permanente medo do fogo inquisitorial, real ou reminiscente, que continuou a consumir e a tolher consciências até pelo menos ao dealbar do século XX.
Esse tremendo desaproveitamento do movimento das Descobertas, não aconteceu apenas ao nível das concepções utópicas, reflectindo-se muito mais gravosamente nas universidades, que à velha escolástica fizeram suceder uma “nova” escolástica.
[1] ARGAN, Julio Carlo, FAGIOLO, Maurizio, Guia de História de Arte, IUEE, 1992, p. 157.
[2] Saint-Simon, Conde de, nasceu em 1760 e faleceu em 1825. Tendo participado na guerra da independência americana (1779-1782), aderiu à Revolução Francesa (1789). Foi um dos primeiros teóricos da sociedade industrial. É da sua autoria a célebre frase “de cada um segundo a sua capacidade, a cada capacidade segundo as suas obras”. Sendo um dos esteios do socialismo do século XIX, advogava que a principal missão do cristianismo era assegurar a fraternidade humana universal.
[3] Nascido em 1772, falecendo em 1837, foi um dos “pais” do socialismo francês, sendo sobretudo um associacionista.
[4] Nascido em 1771, falecendo em 1858, Owen foi um industrial inglês que procurou transformar as suas empresas em verdadeiras comunidades. Lançou os fundamentos do cooperativismo e do sindicalismo contemporâneo.
[5] Aldous Leonard Huxley, nascido em 1894, falecendo em 1963, foi um ensaísta e romancista inglês, que se celebrizou principalmente através da publicação em 1932 da obra “Brave New World”, uma sátira mordaz e amarga a uma sociedade ferozmente controlada e submetida à tecnologia.
[6] Pseudónimo de Eric Blair, nascido em 1903, falecendo em 1950, foi um extraordinário ensaista e romancista, denunciando os perigos quer do capitalismo quer do socialismo totalitário.
[7] Kurt Vonnegut, nascido em 1922, é um romancista e novelista norte-americano, que tem a particularidade de combinar ficção científica com elevadas doses de crítica social. A obra citada no texto, “Player Piano”, publicada em 1952, é um excelente exemplo desse estilo literário, assentando a sua temática na crítica a uma sociedade desumanizada, completamente subjugada por uma ditadura da tecnologia.
[8] “A arte é uma expressão do Belo e o artista um seu criador” CUNHAL, Álvaro, “A Arte, o Artista e a Sociedade”, Edit. Caminho, 1996, p.1.
[9] “A arte é porém alguma coisa mais que o acto e o processo da criação artística. A obra de arte (vive para além da intervenção do artista), torna-se, intencionalmente ou não, um meio de comunicação entre seres humanos, um valor inseparável da sociedade e do qual também a sociedade é inseparável. Uma vez na sociedade, a obra de arte é um elemento e um valor social. Tem uma existência própria, e uma influência própria, pelo que não é necessariamente pelo que o artista queria que fosse. Sendo assim, não se pode contestar o apelo a que os artistas com as suas obras, dêem uma contribuição à sociedade, contribuam com as suas obras, tanto no concreto e conjuntural como numa perspectiva mais longa, para a compreensão, a consciência, o gosto pela vida, o bem estar e a felicidade do ser humano” CUNHAL, Álvaro, in op. cit., pgs. 202-203.
[10] “Agostinho é o único padre da Igreja a quem continua a ser reconhecida autoridade espiritual. Pagãos e cristãos, filósofos e teólogos, sem distinção de correntes e de confissões, todos se ocupam dos seus escritos e todos se confrontam com a sua pessoa. Agostinho exerce simultaneamente uma influência directa sobre a Igreja do Ocidente, cuja tradição assimila, consciente ou inconscientemente, a sua teologia, e, através desta, sobre a cultura, em termos globais, com maiores ou menores alterações e interrupções...Agostinho é um génio, é o único padre da Igreja que pode reclamar o título atribuído pela Modernidade às pessoas célebres” COMPENHAUSEN, H. von, “Lateinische Kirchenvater”, Estugarda, 1960, in “Os Grandes Pensadores do Cristianismo”, KUNG, Hans, Editorial Presença, 1999, p. 17.
[11] MUNFORD, Lewis, “A Cidade na História”, Marins Fontes, 1991, p.s 197 a 198.
[12] Nascido em 1895 e falecendo em 1990, Lewis Munford, foi um extraordinário historiador cultural, um filósofo social, uma autoridade em arquitectura e em urbanismo. Na sua obra “The Culture of Cities”, publicada em 1938, assumiu-se como um crítico da sociedade moderna, que na sua opinião se caracterizava por uma excessiva dependência das questões tecnológicas.Com a sua obra “A Cidade na História”, ganhou em 1962 o prestigiado prémio norte-americano National Book Award.
[13] Ferdinand de Saussure, nascido em 1857, falecendo em 1913, foi um linguista suíço, inspirador do Estruturalismo Linguístico que parte do princípio de que a língua é uma estrutura orgânica, no interior da qual se estabelecem múltiplas relações entre os vários elementos constitutivos.
[14] ARGAN, Julio Carlo, FAGIOLO, Maurizio, “Guia de História de Arte”, IUEE, 1992, p.s 73 a 74.
[15] DRONKE, Peter, “A Simbólica do Espaço”, Editora Espaço, 1991, p. 29.
[16] “As cidades ideais sempre nos pareceram mais de que simples retratos imaginários redutíveis a factores sócio-culturais, históricos ou psicológicos. Para além dessas influências – que, sem dúvida, não são desdenháveis – há tentativas que possuem um propósito comum: expressar a relação pura do homem com a humanidade, na forma de uma ordem social que, nos seus limites, perde o carácter de uma solução política e revela o seu carácter meta-empírico”. MUCAHIELLI, Roger, “Le Mythe de Cité Idéale”, Presses Universitaires de France, 1961, pags. 7-8.
[17] “Todos os modelos ideais têm esta mesma propriedade de deter a vida, mesmo de a negar, daí que nada pode ser mais funesto para a sociedade humana do que realizar esses ideais”. MUNFORD, Lewis, “A Utopia, a Cidade e a Máquina”, in MANUEL, E. Frank, “Utopías y Pensamiento Utópico”, Espasa Universitaria, 1982, p. 35.
Sem comentários:
Enviar um comentário