Era noite de chuva fina e ar quente em Santa Rosa de Copán.
O acaso da descoberta ao sabor do caminhar levou-me por ali...uma rua de empedrado irregular como todas as outras e fez-me parar à frente daquela casa onde a neblina deixava ver o tom verde água, desbotado pelo tempo, da fachada, em que os caixilhos e portadas em ripas pintadas de verde escuro sobressaíam na pálida penumbra.
Casa térrea e larga. Seis janelas divididas a meio por uma porta. Uma porta altiva, decorada a ferro forjado a que o tempo, querendo ela ou não, ofereceu uma patine de ferrugem.
Casa velha – uns cem anos pelo menos – desabitada, abandonada há muito por gente viva.
Coloquei-me do outro lado da rua, abrigado sob o alpendre de uma casa fronteira, a olhá-la com atenção. As casas velhas – tal como os sótãos -, sobretudo as boas casas de arquitectura escorreita de antanho, sempre exerceram sobre mim um estranho fascínio e verdade seja dita, sem falsa modéstia, que sempre soube ver nelas muito mais do que as paredes contavam.
Aquela casa verde não foi excepção. Prendeu-me, apesar da chuva que lentamente me ensopava.
Depressa a imaginação tomou conta dos meus sentidos e comecei a ouvir vozes. Não, não pensem que eram vozes cavas e profundas, daquelas que se costumam atribuir aos fantasmas ou – conforme preferirem – às almas penadas. Não, eram vozes claras, femininas e de timbre amigo.
Apesar da minha surdez, abri as orelhas o mais que pude e – sem remoço ou vergonha – pus-me a ouvir a conversa, já que de uma conversa se tratava.
-“Lembras-te dela? Lembras-te como ela todas as noites nos vinha dar as boas-noites? “”Então raparigas, cearam bem, que foi longo o vosso dia?”” Não te lembras Hilda? Não te lembras da Senhora?
- Claro que me lembro, como me podia esquecer? Como me podia esquecer daquela que nos deu o pão e o tecto e o soldo anos e anos a fio…?
- Lembras-te Hilda? Lembras-te como ela nos vinha mostrar como ia vestida todas as noites que o Senhor a levava ao casino? Lembras-te como ela nos perguntava “”Então raparigas estou bem?””…e como estava bem, como estava sempre bem, lembras-te Hilda?
- Como se fosse hoje, como se estivesse aqui e agora. E como se ria ela quando lhe dizíamos que parecia uma rainha…
- E era uma rainha, Hilda, era a rainha de Santa Rosa de Cópan, mais, era a rainha de todos e de todas entre Santa Rosa e Esmeralda…
- Em compensação o Senhor não era o nosso rei, era apenas o nosso amo…o Patrão…
- Mas ela amava-o Hilda, e pelo amor que lhe tinha, por onde ele passava ela seguia-o amenizando a agrura que ele deixava. Fazia-o por nós mas – tenho a certeza – que o fazia sobretudo por ele.
- E ele sabia Juanita, ele sabia-o e não se importava que ela desfizesse ou atenuasse parte do mal que ele tinha acabado de fazer.
- Sim Hilda, ele sabia, estou até convencida que ele contava com isso, com esperança que tal lhe aligeirasse os pecados…
- E muitos pecados cometeu o Senhor. Não se é dono de todas as plantações de tabaco, da fábrica dos puros, nem se é deputado sem ter cometido tantos pecados.
- Lembro-me que uma vez os segui até ao casino…deixei-os entrar e com muito cuidado para não ser vista, pus-me a espiar a uma das janelas, à espera que o baile começasse, o que não tardou. Como se esperaria abriram eles a dança…e como dançavam os dois…rodopiavam por toda a sala, ela parecia um anjo branco e louro e ele um diabo, moreno como um tição, com aquele esgar feito sorriso, a olhar para todos os lados, em todas as voltas da dança, a olhar a olhar mas sem ver ninguém.
- Hilda o nosso patrão era assim olhava atentamente mas nunca nos via, só queria ver o fruto do nosso trabalho…
- Sim Juanita é verdade, mas ali a dançar com ela até parecia que era bom…
- Isso era a Senhora, Hilda. Era a Senhora que ao abraçá-lo lhe dava um coração…
- Talvez Juanita, talvez.
- Mas isso são contas de um rosário que já passou. Estão ambos mortos e sem descendência e tudo se perdeu.
- Sim Hilda tudo se perdeu. Até a memória da Rainha de Santa Rosa de Cópan. Dela só resta esta casa só e a lembrá-la nós. Duas assombrações, duas criadas da casa que por não terem tido outra não sabem para onde ir e que também ninguém as veio chamar. Nem a Senhora.
E de repente da casa só, só veio o silêncio. E o silêncio da casa trouxe-me de volta àquela rua em que chovia. Segui o meu caminho.
O acaso da descoberta ao sabor do caminhar levou-me por ali...uma rua de empedrado irregular como todas as outras e fez-me parar à frente daquela casa onde a neblina deixava ver o tom verde água, desbotado pelo tempo, da fachada, em que os caixilhos e portadas em ripas pintadas de verde escuro sobressaíam na pálida penumbra.
Casa térrea e larga. Seis janelas divididas a meio por uma porta. Uma porta altiva, decorada a ferro forjado a que o tempo, querendo ela ou não, ofereceu uma patine de ferrugem.
Casa velha – uns cem anos pelo menos – desabitada, abandonada há muito por gente viva.
Coloquei-me do outro lado da rua, abrigado sob o alpendre de uma casa fronteira, a olhá-la com atenção. As casas velhas – tal como os sótãos -, sobretudo as boas casas de arquitectura escorreita de antanho, sempre exerceram sobre mim um estranho fascínio e verdade seja dita, sem falsa modéstia, que sempre soube ver nelas muito mais do que as paredes contavam.
Aquela casa verde não foi excepção. Prendeu-me, apesar da chuva que lentamente me ensopava.
Depressa a imaginação tomou conta dos meus sentidos e comecei a ouvir vozes. Não, não pensem que eram vozes cavas e profundas, daquelas que se costumam atribuir aos fantasmas ou – conforme preferirem – às almas penadas. Não, eram vozes claras, femininas e de timbre amigo.
Apesar da minha surdez, abri as orelhas o mais que pude e – sem remoço ou vergonha – pus-me a ouvir a conversa, já que de uma conversa se tratava.
-“Lembras-te dela? Lembras-te como ela todas as noites nos vinha dar as boas-noites? “”Então raparigas, cearam bem, que foi longo o vosso dia?”” Não te lembras Hilda? Não te lembras da Senhora?
- Claro que me lembro, como me podia esquecer? Como me podia esquecer daquela que nos deu o pão e o tecto e o soldo anos e anos a fio…?
- Lembras-te Hilda? Lembras-te como ela nos vinha mostrar como ia vestida todas as noites que o Senhor a levava ao casino? Lembras-te como ela nos perguntava “”Então raparigas estou bem?””…e como estava bem, como estava sempre bem, lembras-te Hilda?
- Como se fosse hoje, como se estivesse aqui e agora. E como se ria ela quando lhe dizíamos que parecia uma rainha…
- E era uma rainha, Hilda, era a rainha de Santa Rosa de Cópan, mais, era a rainha de todos e de todas entre Santa Rosa e Esmeralda…
- Em compensação o Senhor não era o nosso rei, era apenas o nosso amo…o Patrão…
- Mas ela amava-o Hilda, e pelo amor que lhe tinha, por onde ele passava ela seguia-o amenizando a agrura que ele deixava. Fazia-o por nós mas – tenho a certeza – que o fazia sobretudo por ele.
- E ele sabia Juanita, ele sabia-o e não se importava que ela desfizesse ou atenuasse parte do mal que ele tinha acabado de fazer.
- Sim Hilda, ele sabia, estou até convencida que ele contava com isso, com esperança que tal lhe aligeirasse os pecados…
- E muitos pecados cometeu o Senhor. Não se é dono de todas as plantações de tabaco, da fábrica dos puros, nem se é deputado sem ter cometido tantos pecados.
- Lembro-me que uma vez os segui até ao casino…deixei-os entrar e com muito cuidado para não ser vista, pus-me a espiar a uma das janelas, à espera que o baile começasse, o que não tardou. Como se esperaria abriram eles a dança…e como dançavam os dois…rodopiavam por toda a sala, ela parecia um anjo branco e louro e ele um diabo, moreno como um tição, com aquele esgar feito sorriso, a olhar para todos os lados, em todas as voltas da dança, a olhar a olhar mas sem ver ninguém.
- Hilda o nosso patrão era assim olhava atentamente mas nunca nos via, só queria ver o fruto do nosso trabalho…
- Sim Juanita é verdade, mas ali a dançar com ela até parecia que era bom…
- Isso era a Senhora, Hilda. Era a Senhora que ao abraçá-lo lhe dava um coração…
- Talvez Juanita, talvez.
- Mas isso são contas de um rosário que já passou. Estão ambos mortos e sem descendência e tudo se perdeu.
- Sim Hilda tudo se perdeu. Até a memória da Rainha de Santa Rosa de Cópan. Dela só resta esta casa só e a lembrá-la nós. Duas assombrações, duas criadas da casa que por não terem tido outra não sabem para onde ir e que também ninguém as veio chamar. Nem a Senhora.
E de repente da casa só, só veio o silêncio. E o silêncio da casa trouxe-me de volta àquela rua em que chovia. Segui o meu caminho.
Às vezes, em certos locais, é preciso saber ver o que já não se vê.
2 comentários:
De Santa Rosa também guardo recordações chuvosas e lamacentas... De uma vez ajudámos a soltar uma pequena camioneta que seguia carregada de gente e se havia atolado numa curva da estrada que andava, então em obras de recuperação intermináveis... Também me lembro de um almoço tardio e de um grupo de amigos que nos levou a esse almoço.
Excelente.
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