sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Conto - "O Reveillon do Cínico"

Olhou em redor de si, fixando-se demoradamente naqueles rostos, em todos aqueles que o seu olhar conseguia abarcar, rostos que ansiosamente berravam a passagem dos segundos, em crescendo sonoro até ao zero.
Não conseguia berrar com eles, nem sequer percebia muito bem porque o faziam. Tudo, naquele som ritmado, que se ia transformando em clamor, lhe fazia lembrar um arfar forte, ansioso e desesperado, próprio de quem busca, com urgência de avassalador desejo, um orgasmo.
Ora um orgasmo, pensou, não servia como o sentir apropriado a uma passagem de ano, que pressupõe esperança de renovação, uma doce e terna esperança. Um orgasmo ou nos leva ao abandono do vazio ou ao sabor a fel. Não há meio termo. Abandono para reinicio é algo muito pouco conveniente, um amargor para um recomeçar é mais de meio caminho andado para a desistência.
Foi parar aquela festa por obrigação. Uma obrigação terna é certo, mas obrigação. Uma obrigação devida a uma relação guardada numa das gavetas da gigantesca estante da sua memória.
Ela tinha-lhe telefonado.
Tinha-lhe telefonado várias vezes, queria-o na sua cidade e na sua festa.
Finalmente o Zero!
Que pena o Zero!
Abraços, abraços e mais abraços, beijos, beijos e mais beijos, trocados indiscriminadamente, palavras, palavras e mais palavras, tão bem intencionadas e tão sem sentido.
Procurou-a com os olhos, olhou-a, assim de longe, para que ela de dele só tivesse um ápice demasiado rápido para qualquer palavra, pôs os dedos nos lábios e soprou-lhe um beijo.
Pegou no sobretudo e saiu. Como gostava ele de sair assim, à francesa.
Tinha vindo de taxi, optando por deixar o carro no labiríntico parque do hotel. Detestava conduzir depois de ter bebido.
Ao contrário do bem, gostava sempre de saber exactamente o mal que fazia.
Decidiu regressar a pé.
A noite estava muito fria, densa, carregada de uma névoa feita de morrinha, fumo condensado e libações do rio, aquilo a que os ingleses chamam smog.
A meio da ponte decidiu parar, debruçando-se sobre o varandim molhado, tentando ver o rio, que mais não era de que uma massa líquida, negra, murmurante e apenas pressentida.
Gostava de escutar o som da água que corre, da mesma forma que gostava de escutar o tique-taque dos ponteiros de um relógio - especialmente daqueles relógios de parede -, e o bate bate contínuo das ondas nas rochas.
Esses sons ajudavam-no a melhor percepcionar a noção de perenidade. A perenidade foi uma das certezas que perdeu nesse caminho de meia vida. Nada dura, muito menos as ilusões, sobretudo as ilusões.
Deixou-se enlevar por aquela corrente escondida no breu, da qual só escutava o roçar forte das águas de leito cheio pelas margens, que reproduzia um som regular, de efeito quase hipnótico.
Essa espécie de rumor ronronado tinha o condão de o fazer mergulhar em miragens do passado ou de o levar a divagações, erráticas, e muitíssimo conceptuais.
Esse exercício, quase involuntário, fazia-o descansar, por mais esforço de raciocínio a que muitas vezes o obrigava.
Encaixava esse paradoxo orgânico-mental no mesmo que o levava a foder muito mais quanto mais cansado, do ponto de vista intelectual, se sentia.
Esse enlevo tranquilo que lhe permitia esconder-se do desconforto da noite, levou-o à consciência de que era um homem habituado a fazer. Toda a vida fez coisas. Coisas com sentido e, algumas vezes, tantas vezes, coisas sem sentido nenhum, pelo menos com sentido descortinável por essa sua santíssima vocação de analista sistemático.
A única diferença, recordando-se de um passando não muito longínquo, é que quase já não sentia prazer em fazer o que quer que fosse, embora não conseguisse passar sem persistir em fazer. Facto que não o assustava, aliás facto em relação ao qual se estava nas tintas.
Que raio de desprendimento seria esse ?
Começava a sentir falta de não ser religioso. Mais pena do que falta. De não ter a que se agarrar, de não ser portador de uma fé para depositar esse desalento todo, de não se esperançar na confortante promessa da redenção, sentida como uma espécie de abraço caloroso de um deus humanizado.
“Felizes os que têm coração de pobres, porque é deles o Reino dos céus! Felizes os que choram, porque Deus os consolará! Felizes os humildes, porque terão como herança a Terra Prometida! Felizes os que têm ânsia de cumprir a vontade de Deus, porque Deus lhes satisfará os anseios! Felizes os que tratam os outros com misericórdia, porque Deus os tratará com misericórdia também! Felizes os sinceros de coração porque hão-de ver a Deus! Felizes os que procuram a paz entre os homens, porque Deus lhes chamará seus filhos! Felizes os que serão perseguidos por cumprirem vontade de Deus, porque deles é o Reino dos Céus! Considerem-se felizes quando vos insultarem e vos caluniarem, por serem meus discípulos! Alegrem-se e encham-se de satisfação, porque grande é a recompensa que vos espera no céu. Pois assim também forma tratados os profetas que viveram antes de vocês.”
É evidente que acreditava em deus. Acreditava é claro. Acreditava na sua ex-machina pessoal e particular. A tal o condenava a maldita lógica clássica e no entanto tão judaica na busca de um porquê para tudo.
Este seu deus, um estranho deus para a maioria, não é mais do que um primórdio perdido nas brumas avassaladoras do Tempo, um subtil princípio inspirador, causa absoluta de um incomensurável total. Que não é bom nem mau. Que é tudo e nada. Que é gélido e árido como uma paisagem lunar ou polar. O seu deus é a mais absoluta das indiferenças.
Concedia-lhe dois papéis. O de ser a chama da ignição do imenso motor universal e – também – o de ser um primo-impressor, na energia colectiva que a nossa espécie partilha com o que há de mais, de uma ténue noção de Bem e de Mal.
Ele sabia o que é o Bem. Ele sabia o que é o Mal.
Nunca teve a veleidade de recorrer a este seu deus. Meu deus, meu deus. Sempre o tratou com desdém. Não um desdém filho da arrogância, mas um desdém de que sente a inutilidade do recurso para o agora que eventualmente se impunha.
Mas era difícil...era difícil e cómico viver assim. Assim só. Assim desamparado. Assim tão confrontado consigo mesmo. Mas sempre assim foi.
Ele não tinha direito a um perdão concedido em justa troca por uma confissão. Das suas escassas confissões, feitas aos outros e feitas a si mesmo, resultavam sempre condenações. Umas eternas. Outras nem tanto. Mas sempre condenações. Às vezes, em excepções raríssimas...algumas compreensões. Nada mais do que isso.
Tinha inveja de quem tem fé. Sobretudo dos católicos. Religião que se fez tão amena e doce. A Igreja Católica é uma mãe, uma terna mãe corporizada paradoxalmente em muitos paizinhos – padres, bispos, cardeais e papas. Paizinhos a fazerem a vez da mãezinha. É tão assim que até vestem saias.
É muito bom ter tantos ombros e colos, imaginava. Tantas respostas simples a problemas que são sempre simples. Não há maior complexidade do que a simplicidade. A simplicidade quanto ao enunciado. A simplicidade quanto às respostas.
O seu bloqueio à fé, ao consolo do perfeito, advinha-lhe da sua consciência tremendamente humana. A sua imperfeição, tão dissecada, tão solitariamente comprovada, incapacitou-o de conceber, mesmo que abstractamente a perfeição.
Apesar desta sua arreligiosidade, ou se calhar por causa disso mesmo, reconhecia às religiões um papel fundamental para a preservação da espécie. São as grandes consoladoras, o analgésico barato e são um bom compêndio de normas de conduta nas relações dos homens com os outros homens. Podiam era ser mais conciliadoras.
A paulatina perda das certezas e a ausência de fé fez-lhe amar as Ideias. Quem não tem fé nem certezas tem Ideias. Ideias abstractas, de falibilidade intrínseca e de absoluta fragilidade, por mais sólidas que pareçam.
Amava assim e então as Ideias e por isso mesmo e também os Mitos. Pelas Ideias que encerram. Os Mitos.
No amor do Mito era visceralmente cristão, não discípulo do deus feito homem mas solidário daquele nazareno crucificado no seio do escárnio.
Apaixonou-se pela Ideia que o recheia, a esse Cristo enxovalhado. Uma Ideia feita de justiça, fraternidade, tolerância e compaixão. Uma Ideia assim é frágil e só sobrevive pela prova e não pela mera teorização.
Nessa Ideia encontrava o seu Bem em contraponto com o seu Mal.
Sobressaltou-se com a estridência de uma buzina.
Voltou-se assustado.
Um carro parado com o vidro aberto. Um alguém debruçado com um olhar apreensivo.
Caiu em si.
Noite de Passagem de Ano. Ele ali. Debruçado num varandim de ponte.
Que retrato mais perfeito de suicida.
Começou a rir-se. Eu não sou desses, sou demasiado teimoso para isso, pensou.
Observou, com atenção, aquele rosto crispado que me fixava.
Uma cara de uma ela com face de anjo. Não daqueles anjos rubicundos e barrocos, de barriga abundante e pele cor de leitão, com mamas balzaquianas.
Mas uma cara de anjo exactamente igual aquela que desde miúdo persistia em visitá-lo nos seus sonhos, neles entrando de rompante, deles saindo de repente. Pálida, magra, de lábios finos e olhos brilhantes.
Uma cara inocentemente perversa, infantil, embrulhada numa tremenda e visível angústia. Angústia por ele? Angústia para ele? Ainda não o sabia.
“Não se assuste, apenas tentava ver o rio”.
“Precisa de alguma coisa?”
Olhou para o relógio, apercebeu-se do frio e das gotas de água que por si escorriam.


“Preciso de uma boleia”.

3 comentários:

nana disse...

diz-lhe a ele, se o vires, que se voltar a acreditar um pouco que seja, assim a sério, talvez uma qualquer boleia o leve mais próximo desses caminhos que reconhecerá, dentro.

..

eu acredito.

x

Unknown disse...

Eu fico pelo prazer de ter lido este conto.
Vou subir as escadas e vou dormir "no meio" dele.

Obrigada e um beijo

mdsol disse...

preciso (de) ler impresso...
:))