Eis que aqui estou perante Vós, a milionésima vez que cá estou.
À vossa estafada pergunta, Senhores Juízes do Purgatório, porque em vida não amei ninguém, respondo-vos com a mesma estafada resposta:
Amei a cidade. A cidade orgânica, organismo vivo, território físico e mental. Amei a promiscuidade diferente dos que não se conhecem e se cruzam anonimamente. O quente dos corpos que se roçam, que se chocam, que embrulham corações frios que não se conhecem, nem querem conhecer, uns aos outros.
Amei os cantos escondidos da urbe. As esquinas, os becos sem saída. Os cafés grandes, com espelho na parede, repletos de gente, em que só nos olha o nosso próprio olhar reflectido pelo espelho.
Amei a força da urbe, muitíssimo mais forte que a força da gentes que a formam. Amei o seu acordar ritmado e cedo, mesmo depois de ter teimado em não se deitar.
Amei as conversas da cidade que são sempre ecos de conversas.
A cidade foi a minha paixão constante. Coleccionei-as, na medida em que elas se deixam coleccionar. No álbum das minhas memórias guardei cheiros, sons, ruídos e imagens de muitas e muitas cidades deste nosso mundo. Cidades tão diferentes e no entanto tão parecidas. Cidades tantas que amei cada uma como se fossem únicas.
Há cidades para que foram feitas para nelas caminhando olhando para o alto, para os pisos avarandados que o azul da frecha entre os telhados consegue pintar, em contraste com o cinzento carregado do cá de baixo. Ficai a saber, se não o sabeis, o Porto é uma cidade para caminhar a olhar para o alto.
Há cidades que foram feitas para nos encostarmos a uma esquina de uma das suas colinas e nos deixarmos ofuscar pelo sol reflectido no branco sujo e amornar pelo calor. Lisboa é uma cidade boa para nos encostar-mos a uma esquina.
Há cidades que foram feitas para nos perder de todos e de nós mesmos, absorvidos pela trama intrincada das suas ruas e avenidas, pela mole imensa das suas gentes, pelas cronologias sobrepostas e todas anacrónicas, pelos contrates sintetizados pela não síntese. Shanghai é uma cidade excelente para nos perdermos, para nos arrastarmos pelo ritmo indolente da própria passada, anonimamente anónimos na Bund, parando aqui e ali embasbacados a ver o lado de lá que é cibernético, que é Blade Runner, que é Pudong.
Tendo amado assim a cidade, e nela todas as cidades do mundo, não é justo que afirmeis que não amei ninguém.
Amar a cidade é amar todos sem distinção ou preconceito, sem conveniência ou circunstância propícia.
Amar a cidade é saber-nos iguais ao mais pequeno dos pequenos e ao mais relevante dos salientes.
Amar a cidade é saber ver na solidão de cada um a dignidade intrínseca do ser que rasga a samarra, tecida com o ruído, a indiferença e a opacidade da multidão.
Tenho dito!
1 comentário:
E disseste muito bem.
Bj
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