Capítulo 1
É bem verdade que sempre gostou do calor, mas nunca como agora este entardeceres mornos de estio lhe souberam tão bem.
Corpo sentado em cadeira de plástico, bebericando e buscando nenhum outro sentido que não o fresco, deixando os olhos repousar, indolentes, nos passeantes da marginal, imaginando no entanto a vista para além deles, a imensa tela chamada mar, que desta vez seria tão azul, fazendo do horizonte uma mera linha esbatida com o céu.
Pensava e o pensamento tem coisas curiosas, permite-nos pensar o que se pensa, pensando em paralelo. Pensamos o longe, pensando o perto, pensamos o passado, pensando o presente. O futuro, bem o futuro pode ser pensado, mas a deus pertence.
Passado. O seu passado, nesse fim de tarde de verão, só oferecia ecos. Ecos de risos, ecos de passos corridos sobre asfalto semi-derretido e pegajoso, daquela estrada interior da vilória atlântica que servia para passar férias.
Tempos de Lawrence da Arábia no areal deserto da praia e de Robin dos Bosques nas matas vizinhas.
Tempos do tudo possível, das cronologias fantásticas, dos heróis míticos.
Tempos da absoluta importância, de tanta coisa que o tempo, estupidamente, fez desvalorizar.
Aquele seu corpo sentado na cadeira de plástico era matreiro. Matreiro na medida em que o seu evidente uso, abuso e desgaste, ocultava o sentir da intemporalidade, apenas possível a quem ao longo da vida, na verdade, viveu.
Essa matreirice era tanto ao mais pantomineira quantos todos sabemos, ou deveríamos saber, que o intemporal é sempre novo.
De repente, o passado que ecoava no pensamento paralelo desvaneceu-se, sendo substituído pela acre e fresca sensação do gin.
Desde que se lembrava a beber, sempre tinha preferido essa bebida. Aquela espécie de sabor a perfume constantemente o divertia, persistindo-lhe em trazer dos confins da memória uma mulher imaginada. Uma velha cabra inglesa, na vida entre trejeitos de lady e de puta, má, calculista, arrivista, desavergonhada, mas estranhamente sadia.
Essa mulher que desde os tempos dos primeiros copos, e que o acompanhava logo a partir do primeiro gole de gin, transformou-se numa companheira de sempre.
Arranjou-lhe um nome. Chamou-lhe Miss Rose Deepcut.
Miss Rose Deepcut, reconhecia intimamente aquele corpo matreiro, foi a sua melhor confidente da vida. Foi a ela que tudo contou. Um tudo mesmo cheio de tudo: vitórias e derrotas, paixões e ódios, amores e desamores, os “aquilo é que foi” e até mesmo todos os “assim assim”.
Miss Rose Deepcut sabia hoje mais de si mesmo do que ele próprio, já que, ao contrário dele, de nada se tinha esquecido.
Miss Rose Deepcut, nessa tarde de estio, de dentro dele olhou-o e teve pena.
Teve pena porque ela sabia que a intemporalidade era uma farsa, e que a matreirice era isso mesmo: uma matreirice. Uma matreirice de velho.
Um velho que não veria outra tarde e que urgia que partisse a sorrir.
Então Miss Rose Deepcut decidiu. Decidiu contar ao velho, muito daquilo que o velho já se tinha esquecido ou sobre as quais já não detinha qualquer certeza.
Se como afirma Clement a Razão é a rameira do Diabo, então é certo ser sua partida o facto de que quando se chega a certa idade não se ter quase nenhuma certeza, fazendo o confronto quotidiano com isso mesmo a realidade mais palpável, o que se torna, de certa forma doloroso, quando se viveu anos e anos dono e senhor de algumas certezas profundas, absolutas e imaginadas inabaláveis.
Reflectindo melhor, a expressão correcta nem sequer é “doloroso”, mas sim desconcertante, e a dor advém, talvez, do desequilíbrio que essa perda de escoras consideradas fidelíssimas, dessas amarras sólidas, provoca, e a Miss Rose Deepcut sabia isso exactamente, e sabendo, à laia de consolo, pôs-se a recuperar-lhe o fio à meada que tinha sido a sua vida, ou pelo menos desenvencilhá-la aqui e ali.
Começou exactamente por aquela distante noite de passagem de ano, do ano em que o velho, sabe-se lá porquê, tinha decidido ser a exacta metade da sua vida, confiando, como sempre foi seu timbre, mais na sorte do que na medicina.
Miss Rose Deepcut tinha consciência que mais valia contar o que havia a contar cá da frente lá para trás, mas como sempre foi teimosa, ferrou-se no facto que apesar de meia vida de respiração ser tempo escasso para biografia, contrapôs a si mesma que contava a vida a quem a viveu, a quem carregava em si mesmo não a insustentável leveza do ser, que Kundera imortalizou, mas naquele caso particular, a insustentável leveza de todos os minutos já consumidos, excepto os do tempo do útero e do seio, que nem ela se lembrava, porque nunca tinha sabido, e como tudo na vida, se não lembra, não pesa.
Corpo sentado em cadeira de plástico, bebericando e buscando nenhum outro sentido que não o fresco, deixando os olhos repousar, indolentes, nos passeantes da marginal, imaginando no entanto a vista para além deles, a imensa tela chamada mar, que desta vez seria tão azul, fazendo do horizonte uma mera linha esbatida com o céu.
Pensava e o pensamento tem coisas curiosas, permite-nos pensar o que se pensa, pensando em paralelo. Pensamos o longe, pensando o perto, pensamos o passado, pensando o presente. O futuro, bem o futuro pode ser pensado, mas a deus pertence.
Passado. O seu passado, nesse fim de tarde de verão, só oferecia ecos. Ecos de risos, ecos de passos corridos sobre asfalto semi-derretido e pegajoso, daquela estrada interior da vilória atlântica que servia para passar férias.
Tempos de Lawrence da Arábia no areal deserto da praia e de Robin dos Bosques nas matas vizinhas.
Tempos do tudo possível, das cronologias fantásticas, dos heróis míticos.
Tempos da absoluta importância, de tanta coisa que o tempo, estupidamente, fez desvalorizar.
Aquele seu corpo sentado na cadeira de plástico era matreiro. Matreiro na medida em que o seu evidente uso, abuso e desgaste, ocultava o sentir da intemporalidade, apenas possível a quem ao longo da vida, na verdade, viveu.
Essa matreirice era tanto ao mais pantomineira quantos todos sabemos, ou deveríamos saber, que o intemporal é sempre novo.
De repente, o passado que ecoava no pensamento paralelo desvaneceu-se, sendo substituído pela acre e fresca sensação do gin.
Desde que se lembrava a beber, sempre tinha preferido essa bebida. Aquela espécie de sabor a perfume constantemente o divertia, persistindo-lhe em trazer dos confins da memória uma mulher imaginada. Uma velha cabra inglesa, na vida entre trejeitos de lady e de puta, má, calculista, arrivista, desavergonhada, mas estranhamente sadia.
Essa mulher que desde os tempos dos primeiros copos, e que o acompanhava logo a partir do primeiro gole de gin, transformou-se numa companheira de sempre.
Arranjou-lhe um nome. Chamou-lhe Miss Rose Deepcut.
Miss Rose Deepcut, reconhecia intimamente aquele corpo matreiro, foi a sua melhor confidente da vida. Foi a ela que tudo contou. Um tudo mesmo cheio de tudo: vitórias e derrotas, paixões e ódios, amores e desamores, os “aquilo é que foi” e até mesmo todos os “assim assim”.
Miss Rose Deepcut sabia hoje mais de si mesmo do que ele próprio, já que, ao contrário dele, de nada se tinha esquecido.
Miss Rose Deepcut, nessa tarde de estio, de dentro dele olhou-o e teve pena.
Teve pena porque ela sabia que a intemporalidade era uma farsa, e que a matreirice era isso mesmo: uma matreirice. Uma matreirice de velho.
Um velho que não veria outra tarde e que urgia que partisse a sorrir.
Então Miss Rose Deepcut decidiu. Decidiu contar ao velho, muito daquilo que o velho já se tinha esquecido ou sobre as quais já não detinha qualquer certeza.
Se como afirma Clement a Razão é a rameira do Diabo, então é certo ser sua partida o facto de que quando se chega a certa idade não se ter quase nenhuma certeza, fazendo o confronto quotidiano com isso mesmo a realidade mais palpável, o que se torna, de certa forma doloroso, quando se viveu anos e anos dono e senhor de algumas certezas profundas, absolutas e imaginadas inabaláveis.
Reflectindo melhor, a expressão correcta nem sequer é “doloroso”, mas sim desconcertante, e a dor advém, talvez, do desequilíbrio que essa perda de escoras consideradas fidelíssimas, dessas amarras sólidas, provoca, e a Miss Rose Deepcut sabia isso exactamente, e sabendo, à laia de consolo, pôs-se a recuperar-lhe o fio à meada que tinha sido a sua vida, ou pelo menos desenvencilhá-la aqui e ali.
Começou exactamente por aquela distante noite de passagem de ano, do ano em que o velho, sabe-se lá porquê, tinha decidido ser a exacta metade da sua vida, confiando, como sempre foi seu timbre, mais na sorte do que na medicina.
Miss Rose Deepcut tinha consciência que mais valia contar o que havia a contar cá da frente lá para trás, mas como sempre foi teimosa, ferrou-se no facto que apesar de meia vida de respiração ser tempo escasso para biografia, contrapôs a si mesma que contava a vida a quem a viveu, a quem carregava em si mesmo não a insustentável leveza do ser, que Kundera imortalizou, mas naquele caso particular, a insustentável leveza de todos os minutos já consumidos, excepto os do tempo do útero e do seio, que nem ela se lembrava, porque nunca tinha sabido, e como tudo na vida, se não lembra, não pesa.
5 comentários:
Gostei muito. Uma escrita lúcida e límpida que atrai. Não apetece parar, como nos acontece com muitos livros, com as boas estórias e os bons romances. Mas, aqui, em jeito de post, o autor obriga-nos a uma pausa quando pretendíamos continuar sem parar...
Aguardo o desenrolar da estória de vida de um homem, que terá concerteza muito para contar e relembrar e, quiçá, para nos ensinar.
Não gostava de esperar muito pelos capítulos seguintes:)
Parabéns! Escreves muito bem. Sentimos as palavras e vivemo-las.
Um beijo
:)))) cap.I... huummmmm há mais?! Que bom :)
Gostei muuuiiittoooo....
besos
Vai haver sempre mais...é uma fonte inesgotável de boa escrita e criatividade :)Digo eu porque o sei.
.....
venha o 2....
para quando o 2º capítulo?
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